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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Ética Médica e a Bioética

Oliveiros Guanais*
Há séculos, Hipócrates elaborou o Juramento que nortearia a medicina, com preceitos por todos os médicos conhecidos. Esse documento, mais antigo que a própria palavra ética, tem ainda hoje validade para lembrar ao médico como melhor deve realizar sua missão. De Hipócrates até a era contemporânea, muito se escreveu sobre a ética, como ramo da filosofia, e muitos julgamentos e recomendações foram feitos no domínio da prática médica. Mas as palavras ética e medicina só se encontraram efetivamente em 1803, quando Thomas Percival, médico inglês com formação humanística e filosófica, criou o primeiro código de ética médica (Percival foi contemporâneo de Jeremy Bentham, famoso filósofo utilitarista, criador da palavra deontologia e apaixonado pela codificação das leis, tarefa em que não teve sucesso em sua pátria, berço da comon law, nem nos Estados Unidos da América, onde ofereceu seus préstimos jurídicos ao presidente James Madison, sendo por este cozido em banho-maria). Apesar de Percival não possuir o talento de Bentham, teve mais sorte do que este, pois seu código foi adotado, de forma quase integral, pela Associação Médica Americana, em 1847. A partir de então, a medicina passou a ser a primeira profissão regulada por um código de ética.
A codificação da ética geral é impossível, mas as reflexões de muitos pensadores que se dedicaram ao estudo da ética levam-nos a reconhecer que não é conveniente confiar no juízo de um só homem, por ser ele sujeito, como todos os demais, às falibilidades inerentes à espécie (Aristóteles, o criador da palavra ética, sugeriu, na Ética a Nicômano, que a decisão cabe à percepção. Mas na Arte Retórica, Livro Primeiro, escreveu: é sumamente conveniente que leis bem estabelecidas determinem, na medida do possível, todos os casos, evitando ao máximo deixar margem aberta à decisão dos juízes (...). William Frankena, em seu livro Ética, mostra, com argumentos próprios e teses de terceiros, que a conduta moral não pode ficar subordinada ao arbítrio e intuição da pessoa, como quer a ética ato-deontológica, mas deve orientar-se por regras que apontem os caminhos recomendáveis dentro das circunstâncias que se apresentam: ética normo-deontológica.
Não deve causar surpresa, portanto, que uma profissão tão especial como a medicina, sobre a qual pairam tantas expectativas, tenha necessidade de um corpo de recomendações para orientar a conduta dos seus agentes, o que torna justificável e indispensável a normatização da ética médica.
Podemos, então, dizer que a ética médica contida como semente no Juramento de Hipócrates tem mais de dois milênios de vida, muita história e primogenitura sobre todas as formas de ética, teórica ou aplicada, não tendo sido afetada, em sua trajetória, pela fragilidade da própria medicina, nem pelos ciclos das epidemias exterminadoras da Idade Média, nem pela profusão de doenças incuráveis por inexistência de recursos terapêuticos, nem por influências culturais ou de ordem confessional. Isto porque o Juramento, ao longo do tempo, foi o documento mais claro e preciso concebido para a segura orientação da conduta devida.
A ética médica não deve conformar-se com o reducionismo que alguns desejam imprimir-lhe para ocupar o espaço com novas correntes que pretendem tratar dos mesmos assuntos contidos na programática tradicional da medicina.
A ética médica não se apequena por ter, em suas atribuições, a incumbência de orientar e harmonizar as relações entre médicos ou entre esses e pessoas de outras categorias (doentes ou não), porque o mais elevado atributo do ser humano deve ser dirigido para o reconhecimento dos direitos, deveres e necessidades do outro, o que justifica esforços para romper as desigualdades e assimetrias existentes e visíveis entre os homens, cabendo ao médico - quando essa relação de desequilíbrio tratar-se de sua relação com o doente - o papel inevitável de doador, o que torna sem propósito as críticas feitas ao chamado paternalismo da medicina hipocrática.
A ética médica não deve orientar-se por imperativos categóricos, nem por influências confessionais, nem por dogmatismos ideológicos, nem por egoísmos ético-corporativos, da mesma forma que não pode ficar dependente de recomendações procedentes de outras correntes culturais que desejem orientar a prática da medicina e elaborar juízos axiológicos referentes ao ato médico.
No entanto, a ética médica deve continuar presidindo a qualidade do trabalho que lhe diz respeito, incluindo-se, aí, a vigilância e controle de tudo o que se oferece à medicina - como as novidades trazidas pela veloz biotecnologia do mundo industrializado e rico.
A ética médica, contendo princípios gerais e regras de necessidades sociais, deve interagir com a sociedade a que serve a medicina, ao tempo em que deve estar aberta às contribuições dos que estiverem interessados em ajudá-la nos seus objetivos.
A partir da metade do século XX, vários meios terapêuticos eficazes foram postos à disposição da medicina (sulfas, penicilinas, etc.). Houve a intensificação de pesquisas, inclusive utilizando o homem como objeto de experimentação – em desrespeito ao velho princípio do primum non nocere. E muitos fatos ocorreram, como resultado do esforço de médicos ou das pesquisas no campo da biologia (pílula anticoncepcional, descoberta do DNA, transplante renal, reanimação cardiorrespiratória, contraceptivos orais, hemodiálise crônica, transplante cardíaco, "ressuscitação" de Karen Quinlan, engenharia genética e projeto genoma, clonagem de uma ovelha e muitas coisas mais, acontecidas ou por acontecer). Eventos como os citados deram origem a reflexões de ordem moral, teológica e de outras naturezas. Mas as perplexidades vêm atingindo todos os homens que se inteiram dessas ocorrências, sejam sábios, sejam homens do senso comum, e isso produziu questionamentos e até mudanças de conceitos arraigados no íntimo da consciência humana e da tolerância social. Alguns desses exemplos são: revisão moral de condutas sexuais; discussões sobre a alocação de recursos na saúde; limites que justificam a luta contra a morte; direito à eutanásia, ao aborto e à recusa de tratamentos; redefinição de critérios da morte para finalidades pragmáticas, etc. É claro que situações desse tipo não a precederam, mas foram conseqüência das descobertas do homem e já vinham sendo objeto de estudos por muitos interessados no assunto, sendo a terminologia ética biomédica a mais utilizada como designativo dessa temática. Somente então apareceu Potter - cancerologista americano, humanista preocupado com o descompasso entre o progresso material e as idéias morais correspondentes, tanto no campo da biologia como de outras áreas da ciência, o que lhe pareceu séria ameaça à vida no planeta.
Em artigo de 1970 e livro de 1971, Potter apresentou a palavra bioética, por ele criada a partir de dois radicais gregos simples e conhecidos. Potter queria que a bioética se ocupasse de estudos, reflexões e atitudes para defender o planeta como palco da vida em todas as suas manifestações. Mas o termo bioética, curto, eufônico e semanticamente expressivo, foi expropriado, de forma eticamente questionável, por estudiosos influentes que vinham trabalhando na ética biomédica em centros famosos. A palavra passou por um reducionismo conceitual e espalhou-se, a partir do seu berço americano, por todos os países do mundo rico, industrial, desenvolvido, onde as descobertas são feitas, os proveitos obtidos e as ideologias criadas.
A bioética substitui a ética médica ou contrapõe-se a esta?
Parece-nos insensato admitir ou estimular qualquer forma de conflito. A ética médica tem dois séculos de nome e mais de dois milênios de existência. Cuida da relação dos médicos com os enfermos, e dos médicos entre si. Nessa tarefa, obriga-se a conhecer o ser humano como objeto de fraquezas, necessidades, proteção. Mais que nunca, precisa permanecer vigilante e posicionar-se em face das novidades e progressos que chegam na forma de medicamentos, tecnologias e possibilidades biológicas postas nas mãos do médico, que vai usar esses fabulosos recursos do admirável mundo novo. Se a ética médica enfrenta tão fortes desafios, é bom que tenha a bioética como aliada e colaboradora, ajudando o médico a refletir e posicionar-se sobre assuntos que fazem parte do seu trabalho.
A bioética é muito nova, trinta anos apenas! É preciso, portanto, que haja compreensão para o entusiasmo dos que a ela se vêem dedicando, e que são legiões de intelectuais dos países ricos do Primeiro Mundo (Não se pode criticar a bioética por estar ausente da Etiópia, Bangladesh, Moçambique, Equador, países pobres que têm outros tipos de prioridades e problemas. E como cada povo tem seu tipo de cultura e crença, não é fácil desejar modelos de uniformização).
A bioética, pela força adquirida em tão pouco tempo, parece que veio para ficar. Se isto acontecer, o que desejamos, não será pelo entusiasmo quase juvenil de alguns dos seus acólitos, que a desejam como força locomotora da dinâmica social e política do mundo da esperança. A bioética ganhará persistência se conseguir institucionalizar-se, com autonomia ou associada a outras correntes que se ocupam de questões semelhantes - nesse particular, a ética médica não enfrenta o mesmo tipo de dificuldades, porque tem na própria medicina, nos seus cursos e na sua práxis, na necessidade de sua participação nos conflitos que agridem a integridade biológica do ser humano, os alicerces de sua permanência.
A ética médica será favorecida pela ajuda da bioética, sim. Principalmente considerando-se que esta última tem participação pluralista, contando com a ajuda de homens de outros saberes. Mas tanto a ética médica como a bioética, lidando com a vida de outros, seja no plano do fazer seja no do pensar, permitem trazer à lembrança, como paráfrase, a célebre frase de Clemenceau: "A saúde e a vida do ser humano são assuntos sérios demais para serem entregues a categorias de profissionais ou de sábios, pois cada homem deve opinar sobre seu destino".
* Falecido em 21/11/2010, Oliveiros Guanais de Aguiar, nascido em Caetité, Bahia, era médico anestesiologista. Foi presidente da UNE e membro do Conselho Federal de Medicina.

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