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domingo, 8 de janeiro de 2017

É bobagem culpar a globalização

Angus Deaton*
Ao entrarmos em 2017, a palavra “globalização” terá se tornado um palavrão. Muitos a veem como uma conspiração das elites que enriquecem à custa de todo o mundo. De acordo com seus críticos, a globalização causa um inexorável aumento da desigualdade de renda e riqueza. Os ricos ficam mais ricos e todos os outros não ganham nada. Um bicho-papão. Embora exista alguma verdade nessa visão, ela está mais errada do que certa. E, ao interpretá-la de modo equivocado, as consequências são decisões ruins que provavelmente tornarão piores nossos problemas.
 A primeira coisa que precisamos entender ao considerarmos a globalização é que ela beneficiou um enorme número de pessoas que não fazem parte da elite global. Apesar do contínuo crescimento populacional, o número de pessoas pobres no mundo inteiro diminuiu mais de 1 bilhão nos últimos 30 anos. No mundo rico, todas as faixas de renda também têm se beneficiado da globalização por um motivo simples: os bens - de smartphones a roupas e brinquedos - ficaram mais baratos. Políticas para reverter a globalização provocarão uma diminuição da renda real porque os bens vão se tornar mais caros.
O apelo para refrear a globalização reflete uma crença de que ela acabou com os empregos nos países ricos, mandando-os para países da Ásia e para o México. Porém, a maior ameaça aos empregos não é chinesa nem mexicana. É a automação. É por isso que a produção industrial nos Estados Unidos continua aumentando, mesmo com o declínio do emprego na indústria. Sendo assim, nosso objetivo deveria ser gerenciar as rápidas mudanças tecnológicas para tentar beneficiar a todos. Essa não seria uma tarefa fácil, mas também está longe de ser impossível. O certo é que muitas das supostas soluções vocalizadas hoje, como tarifas de importação mais altas e guerras comerciais, nada farão para ajudar a resolver nossos problemas.
É verdade que a globalização propiciou uma maior desigualdade de renda. Mas grande parte desse aumento deve ser bem recebida - não condenada. Não há nada intrinsecamente ruim na desigualdade. Na Índia e na China, a globalização provocou maior desigualdade de renda porque criou novas oportunidades - na indústria, nos escritórios e no desenvolvimento de softwares -, que beneficiaram milhões de pessoas. Não todas, é certo. Mas é assim mesmo que acontece o progresso. Embora fosse preferível que todos prosperassem ao mesmo tempo, na maioria das vezes não é o que ocorre. Criticar esse tipo de desigualdade é criticar o próprio progresso.
Nos países ricos também, parte do aumento da desigualdade se traduz em melhores oportunidades, devido à passagem de um mercado nacional para um mercado global. Aqueles com talento excepcional e que promovem inovações agora dispõem do mundo todo para ficar ricos. Não é crime ficar rico, compartilhando talentos com mais pessoas ou fazendo coisas novas que beneficiem a todos.
Por certo, há um lado obscuro na desigualdade. Os ricos costumam ter uma influência política fora do comum e, frequentemente, conseguem reescrever as regras em benefício próprio, de suas empresas ou de seus amigos. Nos Estados Unidos, isso não é um grande problema nas eleições presidenciais, uma disputa mais aberta, mas é uma questão no Congresso.
Candidatos a deputado e a senador sentem-se tão pressionados pela necessidade de arrecadar fundos que dificilmente são eleitos ou permanecem no cargo sem o apoio de gente muito rica.
Não quero dizer com isso que os legisladores sejam corruptos. Mas concordo com o professor Lawrence Lessig, da faculdade de direito da Universidade Harvard. Segundo ele, a instituição é corrupta e incapaz de representar pessoas que não tenham a influência que o dinheiro proporciona. É preciso mudar a forma como financiamos a política. As pessoas ricas devem comprar iates, criar fundações ou tornarem-se filantropos. Não devem comprar o governo. O governo deve ser retirado do mercado.
De modo geral, a desigualdade ruim resulta do que os economistas chamam de rent seeking - expressão em inglês para o processo pelo qual grupos conseguem obter privilégios e benefícios e enriquecem à custa dos outros, sem contribuir em nada para o crescimento da economia. Esse é o verdadeiro bicho-papão. Exemplos clássicos são os banqueiros que pressionam o governo para afrouxar a regulamentação do sistema financeiro e, quando os bancos vão à falência, deixam os contribuintes com uma enorme conta a ser paga. Os resgates chegam a somas impressionantes de dinheiro público destinado a pessoas fabulosamente ricas.
Lembre-se de Fannie Mae e Freddie Mac, grandes agentes do financiamento habitacional que recebiam apoio do governo americano. As duas instituições usaram sua força política no Congresso para ficar de fora das regulações enquanto ajudavam a criar a crise do setor imobiliário americano. Da mesma forma, o lobby da agricultura recebe bilhões de dólares em subsídios todos os anos. As empresas farmacêuticas, em vez de criarem novos medicamentos, pressionam o governo para conseguir elevar seus preços e prorrogar as patentes dos produtos existentes.
Todas essas iniciativas retardam o crescimento econômico. Quando a maneira mais fácil de ficar rico é pelo roubo legalizado, a inovação e a criatividade são jogos de cartas marcadas. A socióloga Arlie Russell Hochschild, professora emérita na Universidade da Califórnia, escreveu sobre pessoas que ficam enfurecidas ao ver outros “furarem a fila”. Essa raiva é injustificada quando é uma reação de brancos americanos que, acostumados ao privilégio racial, enfrentam agora um mundo com mais diversidade. Mas a raiva é justificada quando é contra um governo que privilegia interesses especiais.
Numa economia de crescimento lento ou zero, na qual o que se obtém só acontece pelo esforço próprio, esse tipo de roubo legalizado é inadmissível. O crescimento econômico depende da globalização e da verdadeira desigualdade social. Não podemos ignorar os que hoje sofrem, mas não devemos deixar que tentativas erradas de consertar o problema acabem piorando a situação ainda mais. Os verdadeiros bichos-papões são os que obtiveram vantagens do nosso governo. A desigualdade causada por essas vantagens é a desigualdade que precisa ser eliminada.
*Angus Deaton, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2015, é professor de economia e assuntos internacionais na Universidade Princeton. Em 07/01/2017

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