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terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O porquê dos juros altos


Luciano Coutinho*

A hiperinflação rondou o Brasil por mais de uma década após a crise da dívida externa (1980-83). A escassez de moeda forte, fragilidade fiscal e baixa confiança tornavam instável a economia e provocavam episódios recorrentes de desvalorização aguda da taxa de câmbio. Esses episódios impulsionavam a inflação que, por sua vez, se realimentava pela indexação geral de preços, títulos, contratos. Para evitar catástrofes, os governos deflagravam "planos" heterodoxos de congelamento.
Foram seis intervenções malogradas, do Plano Cruzado (1986) ao Plano Collor II (1991), com eficácia minguante. Com reservas parcas, o congelamento do câmbio não aguentava muito tempo e a inflação surtava outra vez. O BC tinha que correr atrás, subindo juros e, assim, voltava a instabilidade. Até que em julho de 1994 veio o Plano Real.
Atento para não repetir os mesmos erros, o Real criou a nova moeda com paridade inicial de um para um em relação ao dólar. Para dar força a essa criação intrinsecamente frágil - dada a escassez de reservas -, a taxa Selic foi fixada em nível nominal altíssimo (41,2% ao ano), oferecendo aos investidores uma alternativa imbatível de remuneração em títulos do Tesouro Nacional. Isto, na partida, surtiu efeito e no curto prazo o real valorizou-se.
No entanto, a política fiscal não ajudou (o superávit primário foi insignificante no período 1994-1998) e espoucaram crises cambiais-financeiras em várias regiões: México no 1º semestre de 1995; Ásia (inclusive Coreia) em 1997; Rússia em 1998. Após o impacto negativo da crise mexicana, o BC adotou um câmbio deslizante, com minidesvalorizações previsíveis, de tal forma que em 12 meses a taxa de câmbio era depreciada em montante igual à diferença entre a inflação doméstica e a inflação externa em dólares. Visava-se ter taxa real de câmbio estável e previsível como âncora-guia. As intempéries externas e a falta de suporte fiscal obrigaram o BC a manter níveis altíssimos de juros. De 1994 a 1998 a Selic nominal média foi de 33,5% ao ano e a Selic real média de 22%.
A crise russa em meados de 1998 atropelou o Brasil. Reeleito, o governo recorreu ao FMI e acordou, em novembro de 1998, um programa de US$ 41,5 bilhões. O câmbio deslizante foi abandonado com mudança no BC e uma nova arquitetura para o Real instituiu o tripé de câmbio flutuante, metas de inflação e política fiscal restritiva. O FMI condicionou seus desembolsos a uma significativa elevação do superávit primário, que entre 1999 e 2002 subiu para 3,6% do PIB. Em maio de 2000 o governo sancionou a Lei de Responsabilidade Fiscal. Apesar do câmbio flutuante e da melhoria fiscal, a Selic caiu parcialmente em termos reais, para 10% ao ano entre 1999 e 2002 (19,7% em termos nominais).
A fragilidade cambial persistia e a ela se agregou outra fraqueza - a ampla indexação da dívida pública: ao final de 1998, 71% dos títulos federais estava indexados à Selic e 21% à taxa de câmbio. Ou seja, 92% da dívida pública - contraparte direta do estoque de riqueza privada - estavam protegidas de riscos, auferiam juros reais elevados e usufruiam de pronta liquidez. Um verdadeiro nirvana para o rentismo.
Sob essas condições, e com déficit nominal de 4,5 a 5% do PIB entre 2000 e 2003, o BC ficou refém do mercado para rolar a dívida bruta. Registre-se que a equipe do primeiro governo Lula aumentou o superávit primário para 4,3% do PIB e reduziu o déficit nominal para 3%. Registre-se também a rápida redução dos títulos públicos indexados ao dólar, concomitantemente à acumulação de reservas com base em crescente superávit comercial.
Mas, apesar desses ganhos, não se logrou reduzir significativamente a taxa de juros (a Selic real média caiu 8,9% entre 2004 e 2008 e a nominal para 14,8%). Esse longo período de 14 anos consecutivos de Selic real muito alta, com persistência da indexação e da pronta liquidez dos títulos públicos, enraizou profundamente no sistema financeiro uma "dependência viciosa" de juros altos.
A institucionalização do regime de juros altos com pronta liquidez concentrou o estoque de poupança nacional em aplicações de maturidades muito curtas e deformou a estrutura temporal dos juros. O Brasil é um exceção gritante no mundo. Em um sistema normal as taxas de juros são positivamente correlacionadas a prazos e riscos, enquanto aqui a estrutura temporal é perversa: juros de curto prazo elevados e liquidez dissociada dos prazos.
A severa recessão atual potencializou a queda da inflação e criou a oportunidade para acelerar a redução da Selic. Para que essa redução seja definitiva e chegue a um patamar efetivamente baixo será essencial restaurar o controle sobre o déficit e sobre a trajetória do endividamento público o que, sabemos, depende do avanço das reformas fiscal e previdenciária. Mas isso não será suficiente.
O desafio de baixar substancialmente o patamar da Selic vai além e requer a superação do círculo vicioso que retém o estoque de poupança no curto prazo, líquido e bem remunerado, sem risco. Antes de apontar o crédito direcionado como "culpado" será prudente avaliar como superar o curtoprazismo e a liquidez incondicional, de forma a criar funding longo para o sistema financeiro e para o mercado de capitais com juros reais compatíveis com o crescimento sustentável. Sem tal antecedente corre-se o risco de destruir bases e instituições que asseguram a existência de financiamento de longo prazo sem colocar nada no lugar.
*Luciano Coutinho, economista, foi Ministro de Ciência e Tecnologia (governo Sarney), e presidente do BNDES (governos Lula e Dilma). Articulista do jornal Valor Econômico.

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