terça-feira, 10 de abril de 2012

O make-up do feminino - A entrada na feminilidade*

Shula Eldar*
Tradução: Roberto Dias
Hoje em dia, a clínica nos põe diante de questões muito interessantes para explorar as posições femininas em nosso tempo.
Vou tentar ilustrar o tema com uma apresentação bastante clássica do problema feita pelo filme de 2009 
do diretor armênio-canadense Atom Egoyan, cujo nome é Chloe (O preço da traição). Ali se faz a pergunta “o que é uma mulher?” ou “como tornar-se mulher?” 
O interessante é, precisamente, a utilização do falo como elemento que guia ou dá uma direção ao relato. 
O nome do filme evoca o romance de Longus (grego), Daphnis e Chloe (séc. III d.C), citado por Lacan ao falar, ironicamente, da iniciação sexual.
1. Não diria que é um filme muito bem sucedido do ponto de vista cinematográfico, mas cai bem para ilustrar o tema de hoje.
No começo, numa espécie de prólogo, “por fora”, “anterior” à trama, vemos uma sequência que nos mostra o falo sob a forma de um corpo de mulher. O falo se encarna no corpo feminino, que se faz suporte desse semblante fundamental.
Alguém, uma mulher ainda anônima, vai vestindo seu próprio corpo. Em frente a um espelho um pouco velado, a vemos colocar, uma a uma, peças de roupa íntima muito sedutoras. Está se compondo como Outra e para Outro, duplamente dividida. Em frente ao espelho e mais além da imagem no espelho. Chloe – uma prostituta de luxo, como descobriremos – “fetichizando” seu corpo, preparando-o para capturar o desejo. A roupa compõe o corpo, o envolve e lhe dá uma unidade. É o disfarce que serve ao corpo de máscara, como nos mistérios antigos.
2Digo que é um prólogo porque está colocado em anterioridade lógica ao que vai suceder.O verdadeiro começo se localiza, no meu entender, em uma cena imediatamente posterior que apresenta o problema da protagonista – (esta é) Catherine –, sua pergunta em relação à sexualidade feminina. Essa pergunta constitui o núcleo da trama, da intriga que logo se desenvolve. A roteirista confessa que começou a escrever como Chloe e terminou como Catherine. Mostra a identificação com a mãe, “a mulher como herdeira da função da mãe, e como despojada, frustrada do elemento do desejo”.
3.Como nos encontramos com Catherine? Nós a encontramos em uma elegante habitação olhando através do vidro de uma grande janela. O diretor não nos esconde o que ela está observando: a jovem da longa cabeleira ruiva entrando no carro de um homem, seu cliente, na porta do hotel que fica logo abaixo. Observa um encontro.
Catherine vira-se e então, ao afastar a vista da cena que a fascina, vemos que seu olhar se desloca junto com o olho da câmera, em direção a outra imagem. E assim Catherine, que é uma ginecologista, se encontra frente a frente com uma mulher triste e esquálida, sua nova paciente. Um segundo mais tarde, a encontramos literalmente entre as pernas dessa mulher. De pé, defrontada com o sexo feminino que está coberto por um lençol. Não está diante do quadro de Courbet...
O breve diálogo que se desenvolve entre as duas é muito interessante. Pergunta sobre sua profissão. 
Bailarina, responde a paciente. “Usa anticoncepcionais?”. Não, responde a outra. “Então, está aqui porque quer ter um filho?” NÃO!!!?, responde quase espantada. “Então?”. Nunca tive muitas relações, nunca tive um orgasmo, há algo no sexo que nunca consegui entender ...
A ginecologista responde de acordo com o manual de fisiologia, tirando a importância da coisa do orgasmo: “Isso não passa de uma série de contrações musculares como consequência da excitação do clitóris”. E encerra assim a questão…
Aqui começa o balé, o balé de quatro pontas, quatro personagens. A ginecologista Catherine, seu marido David, professor de música em uma universidade, o filho adolescente de ambos em plena efervescência sexual e Chloe: a prostituta, o falo de todos os homens que vão ali buscá-lo, o falo universal
4O filho cresceu. A adolescência acarreta para ele, felizmente, um rechaço da mãe intensificado pelo empenho da mesma em perpetuar a relação “infantil”. Ele já não corre como antes para seus braços e isso lhe deixa um vazio que não só a enche de saudades, mas que a enfurece e a angustia.
O filho, por sua vez, se interessa pelo que tem de se interessar. Uma garota de sua idade, a quem deseja e a quem introduz clandestinamente em seu quarto para transar com ela. Quando a mãe vigilante se aproxima do quarto, ele lhe dá com a porta na cara. Assim se fecha a porta da maternidade, o refúgio nessa posição fantasmática de “ter um filho” – a saída normalizada freudiana – entra em colapso.
Assim, deve confrontar-se com a brecha que separa a demanda e o desejo e aparecem os ciúmes em relação ao marido. O gozo ciumento aparece quando se quer dar sentido ao que está fora de sentido: neste caso, o feminino que por um lado, se articula ao falo em seu papel econômico como significante do desejo, mas por outro, remete a um vazio de sentido. 
Começa a suspeitar de seu marido e imagina relações entre ele – um homem bonito, simpático e atencioso com as mulheres – e suas jovens alunas. Isso a obceca. Inventa um plano, um estratagema. Vai ao encontro de Chloe, a aborda e a contrata para que tente seduzir seu marido e lhe conte, passo a passo, sobre seus encontros com ele. Tudo isso em concordância com a estrutura clássica da histeria.
Coloca entre ela e seu marido um terceiro elemento, e assim ela pode gozar por procuração da mulher fetiche, do mesmo modo que ele o faria do falo. Usa o falo para restituir de outra maneira o equilíbrio perdido.
Só que há algo que não calcula: ela mesma sucumbirá à sedução de Chloe, porque é ela que a interessa. 
Estamos na lógica da histeria. Chloe, por sua vez, tem seu próprio plano. O símbolo de seu plano é um precioso “broche” com o qual prende o cabelo, o qual, como descobrimos mais tarde, recebeu de sua própria mãe...
E Catherine sucumbe ao saber fazer de Chloe com o falo. E consente em fazer amor com ela. Ao sucumbir a Chloe, experimenta um outro modo de gozar, se desdobra de outra maneira. Com o falo, goza de seu próprio corpo.
Em uma cena bastante extática, abre-se a um modo de gozo que não é fálico, mas a outro gozo que é o de seu corpo. Produz-se uma mudança de posição que reaviva o desejo e então Chloe deixa de interessá-la.
Descobre-se logo que os encontros entre Chloe e o marido nunca ocorreram. Mas Chloe a acossa e não a deixa ir sem que enfrente seu próprio horror de saber. Por meio da sedução do filho, mete-se em sua casa, em sua cama de casal onde ela descobre, com horror, sua própria paixão maternal. 
Desde que nasceu o filho, lhe diz o marido, perdeu interesse por ele e pelo sexo.
Agora Chloe a persegue, a ameaça, ela a encontra dentro de sua casa, a chantageia. A cena final é o ponto inovador do filme. Catherine, em seu desespero por não poder desprender-se dela, ataca Chloe com o “broche” que a mesma lhe havia presenteado. Empurra Chloe em direção ao vidro que cobre uma grande janela. 
Por um instante a vemos com os braços abertos como um Cristo, logo cai para trás e se precipita no vazio.
Esse desfecho marca a queda da própria Catherine da posição fálica e permite o encontro com o marido. 
Chloe encarna a mulher como objeto da fantasia do homem. A imagem que é preciso existir como suporte do desejo masculino e que muitas mulheres compartilham a partir de sua posição histérica. Por isso Lacan diz que a modalidade do gozo masculino é uma modalidade fetichista. A mulher, nesse sentido, se torna isca para o homem poder aceder ao gozo sexual e gozar do órgão. Mas há algo mais que a obriga a enfrentar uma dimensão que, por não poder se encarnar no símbolo, faz com que a tarefa não seja tão fácil para as mulheres como pensava Freud. 
* Argumento que ilustra o seminário desenvolvido pela autora em Tel Aviv sobre o capítulo XV “A menina e o falo”, de O seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958), de Jacques Lacan.
* Psicoanalista - Barcelona

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