terça-feira, 2 de maio de 2017

O lado esquecido da crise

Marina Silva*
A que ponto chegamos: o ministro da Justiça declara que não tem poder para demitir o presidente da Funai, órgão subordinado ao seu ministério, porque o cargo foi dado a um partido político da chamada "base governista". Dois dias depois, a polícia reprime com violência a manifestação indígena em frente ao Congresso Nacional.
No mês de abril, especialmente no dia 19, nem uma palavra do governo. Parece que a chamada "questão indígena" foi definitivamente resolvida em nosso país - e de um modo muito simples: desconhecendo que esses povos existem. Há algum tempo, o Dia do Índio servia ao menos para anunciar alguma demarcação ou atitude do Estado no reconhecimento dos direitos que os indígenas têm, como todos os brasileiros, assegurados na Constituição. Este ano, a data, literalmente, passou em branco.
A paralisia nas políticas de ordenamento territorial não são exclusividade do governo do presidente Michel Temer, que, aliás, era o vice-presidente de Dilma Rousseff, o governo que menos realizou demarcação, proteção e assentamento desde a Constituição de 1988.
Vamos aos números, para termos uma demonstração matemática dos retrocessos. Verificando as demarcações dos governos pós-ditadura, fica evidente o quanto se andou para trás. Em cada governo, vejamos o número de terras homologadas, a soma em hectares e o percentual que aquele governo cumpriu no total de Terras Indígenas. Os dados exatos são do Instituto Socioambiental (ISA), mas peço licença aos gerentões da objetividade para arredondar os números, afim de não cansar os leitores.
  • FHC: 41,2 milhões de hectares - representando 38% do total
  • Collor: 26,4 milhões de hectares - 24% do total
  • Lula: 18,7 milhões de hectares - 17% do total
  • Sarney: 14,3 milhões de hectares - 13% do total
  • Itamar: 5,4 milhões de hectares - 5% do total
  • Dilma: 3,2 milhões de hectares - 3% do total
Os números mostram a diminuição drástica no atendimento da principal demanda dos povos indígenas por parte do Estado e do sistema político brasileiro nos últimos anos. Mas esse desrespeito aos povos indígenas é apenas um sintoma do enfraquecimento da nação. Há muitos outros sintomas e muitas causas, basta citar dois exemplos correlatos, na área ambiental.
O primeiro é o corte de mais de 40% no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, justamente num momento de forte elevação do desmatamento da Amazônia. O crescimento do desmatamento em 60% nos últimos dois anos, além das consequências desastrosas para conservação ambiental, compromete sobremaneira o compromisso assumido pelo governo brasileiro com o Acordo de Paris em reduzir o desmatamento em 80% até 2020.
O segundo é o empenho do Congresso, que levou apenas 48 horas para aprovar, há duas semanas, as Medidas Provisórias 756 e 758, enviadas pelo Palácio do Planalto. Juntas, elas representam a redução de 1,1 milhão de hectares de unidades de conservação na Amazônia e da Mata Atlântica. A medida provisória 756, ao retalhar um conjunto de unidades de conservação, libera a grilagem de 660 mil hectares de terras públicas que foram alvo de desmatamento e haviam sido ilegalmente ocupadas.
Como a pedra rejeitada pelos construtores, é justamente na agenda socioambiental, onde foi imposto um grande retrocesso, que o Brasil pode encontrar respostas para a superação de graves desafios de nosso tempo. A ausência, no debate público, dessa dimensão estratégica para a vida do país demonstra que, infelizmente, ainda estamos presos a uma visão ultrapassada de que ecologia e economia são separadas e opostas. Essa visão, mais economicista que econômica e mais politiqueira que política, é responsável pelo desmonte sistêmico e acelerado dos órgãos e das políticas socioambientais, conquistados arduamente durante quase três décadas de mobilização intensa da sociedade. O atual governo continua e aprofunda o retrocesso, como mostram os exemplos recentes.
O resultado social de tal política é a violência. Na semana passada, na cidade de Colniza (MT), nove trabalhadores rurais foram assassinados e torturados, uma tragédia que se repete, ano após ano. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2016, foram diagnosticados 1536 conflitos agrários, o maior número desde que a pesquisa começou a ser realizada, em 1985. O mais preocupante é que 1079 desses casos resultaram em violência. A barbárie se instala no lugar deixado vago pelas políticas públicas. A apatia propicia o atropelo.
É inaceitável pensar que no século XXI ainda temos, no Brasil, regiões consideradas terras sem lei, onde a impunidade e a ausência do Estado de Direito imperam, como parte de um regime de interesses econômicos e barganhas políticas.
Mas é justamente a "terra sem lei" do sistema político, com partidos, poderes e governos sem legitimidade, credibilidade ou popularidade, que fornece segurança aos grupos oligárquicos e organizações criminosas que exercem seus podres poderes nos territórios distantes da opinião pública. A violência é a continuação da política "por outros meios" nas unidades de conservação sem regularização, terras de populações tradicionais não demarcadas, assentamentos rurais abandonados. Terra legalizada? Só para latifundiários e/ou grileiros.
O lado esquecido da crise, no final das contas, é a maior parte. É a grande maioria do povo, as riquezas naturais e culturais, os recursos para o desenvolvimento sustentável, a perspectiva de algum futuro. E o que resta é nos juntar, em alma e versos, à cantiga de resistência dos artistas brasileiros que fazem coro com os índios na Esplanada dos Ministérios da República Federativa do Brasil:
"Que bom que veio tudo a furo,
Quinhentos anos de apuro,
E de muito desamor,
Por tudo que era índio,
Por tudo que era mata,
Agua, peixe, bicho e chão.
Por tudo que se tem cá,
Demarcação já, demarcação já!"
*Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da República em 2010 e em 2014.

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