Carlos Benavides*
CIDADE DO MÉXICO - Evo Morales não se arrepende de ter tentado um quarto mandato e diz que esperava governar por 20 anos, até o ano de 2025, já que nessa data emblemática do bicentenário da fundação da Bolívia teria completado o ciclo de transformação política e econômica do país.
Asilado no México desde a terça-feira, Morales considera que não foram as manifestações sociais ou as denúncias de irregularidades eleitorais que levaram à sua saída da Presidência, e sim um conluio para orquestrar um "golpe de Estado" fincado no racismo.
Em entrevista ao jornal mexicano EL UNIVERSAL, o agora ex-presidente rejeitou as denúncias de fraude eleitoral e disse que sua renúncia ao cargo não foi por covardia, e sim para evitar derramamento de sangue na Bolívia. Ele ressaltou que, até o domingo passado, quando renunciou, não havia mortes registradas por ferimentos de tiros. Três dias depois, já eram dez mortos.
O ex-mandatário assegurou que está pronto para voltar à Bolívia de imediato se a Assembleia do país não aceitar a renúncia que apresentou no domingo passado. Voltaria, disse, com objetivo de pacificar o país e organizar novas eleições, nas quais está disposto a não ser candidato.
Morales culpa o governo dos Estados Unidos por estar por trás do "golpe" que o tirou da Presidência e diz que todas as mortes que acontecerem na Bolívia pela crise gerada por sua saída do poder são responsabilidade da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acusa de ter contribuído para o "golpe de Estado".
O senhor era admirado por ter conseguido muitas mudanças na Bolívia, um crescimento econômico muito satisfatório, por ter levado um governo de igualdade ao seu país. No entanto, seus críticos destacam como um erro que tenha desejado um quarto mandato. Foi um erro ter concorrido novamente?
Depois de 13 anos, quase 14 anos, ganhamos no primeiro turno, e a direita nos rouba o triunfo. Na primeira candidatura à Presidência, em 2002 (quando Gonzalo Sánchez de Lozada foi declarado vencedor), eu não perdi, me roubaram. Nesta última também não perdi, me roubaram, ganhamos no primeiro turno. Em 2002, me expulsaram do Congresso; agora com este conflito, me expulsaram da Bolívia. Quando me expulsaram do Congresso, tinha apenas quatro deputados; voltei com 27. Agora que me expulsaram da Bolívia por razões políticas, voltaremos com milhões e milhões: estou convencido porque o povo está mobilizado contra o golpe de Estado. Não me arrependo, não, porque ganhamos as eleições no primeiro turno: não como antes, com mais de 50%, 60%, mas também quero dizer que agora alguns que votaram na direita ou em outros estão arrependidos. Como permaneci por tanto tempo me acusam de ditadura… mas agora o povo está vendo uma ditadura. No domingo que renunciei para que não agredissem meus irmãos, minhas irmãs… Queimaram um dia antes a casa de minha irmã. No que dia em que estava renunciando saquearam minha casa: esse é o racismo, eles semearam racismo. É mal visto ser indígena.
Vê, então, um golpe de Estado sustentado pelo racismo?
Totalmente racismo. Acabam de me informar pessoas próximas no país que a (presidente interina autoproclamada Jeanine Áñez) golpista está governando com tanques e helicópteros, dando tiros, por lá. Até domingo não havia nenhum morto e, até ontem, 10 mortos, isso é ditadura. Eles os fazem gritar "Evo cabrón". Eles os fazem odiar os povos camponeses, indígenas, nativos, os mais humildes, com ódio, racismo; usam a Bíblia contra a família. Para mim, a Bíblia é algo sagrado que nos dá valores; oram para fazer ódio, rezam para discriminar, usam Cristo para marginalizar, para humilhar o povo. Eu sou católico e em nossa Constituição não há uma igreja em primeiro ou segundo lugar, somos um Estado laico; antes, era apenas reconhecida a religião católica; agora, não. Usam a Bíblia contra os mais humildades. Aqui se repete a história dos tempos da colônia, quando alguns bispos chegavam, pegavam a Bíblia e atiravam.
Quanto tempo acredita que deveria ter permanecido na Bolívia como presidente para ter consolidado por completo seu modelo?
Acredito que seria o bastante até o bicentenário (em 2025). Com mais cinco anos estaria consolidado o crescimento econômico, a integração da Bolívia e a universalização dos distintos programas sociais. Essa é a ideia da Bolívia com desenvolvimento, com igualdade social, com integração, com um tema de industrialização.
Sobre as forças que movem esse golpe: o senhor as identifica como internas, mas também com apoio externo?
Sim, estamos convencidos disso. Desde o momento em que o governo atual foi reconhecido primeiro pelos Estados Unidos e depois pela Inglaterra. Isto que está acontecendo é como na Venezuela, mas agora na Bolívia.
Vê a mão de Washington nisso?
Vem daí, é claro.
Mas a OEA assegura que houve irregularidades na eleição. E, com a renúncia, poderia-se pensar que havia um reconhecimento implícito de que houve fraude. O que acha disso?
Eu ainda tinha confiança na OEA, mas agora vi de perto como apenas contribuiu para o golpe de Estado: no domingo, de madrugada, conversei com o seu chefe porque me informaram que havia um informe preliminar (sobre as eleições) e isso alimentou o golpe de Estado. A OEA é, em parte, responsável pelas mortes que estão acontecendo na Bolívia. Eu disse ao representante: “Não faça isso, com isso vão incendiar a Bolívia” e adverti que queria que Luis Almagro (secretário-geral da OEA) soubesse. Eu disse "me coloque em contato com Luis Almagro", ele não quis, disse apenas “vou consultar”; não consultou nada e depois publicou seu relatório. Eu não pediria que cometessem fraude, não faria isso jamais, venho das famílias mais humildes, das famílias indígenas; meus pais me ensinaram valores, me ensinaram a nunca mentir, não minto; roubar, jamais. Quero que saibam que, quando era criança, meu pai me disse: “Nunca se rouba.” Se algum dia não tiver dinheiro, melhor dizer “me empreste”; se souber que nunca vai poder devolver o emprestado é melhor dizer “me ajude” do que roubar.
Qual o seu plano, sua estratégia para voltar e continuar com seu modelo?
Minha renúncia está na Assembleia. Se a Assembleia rejeitar a minha renúncia, que bom, nesse momento me sinto capaz de voltar para pacificar a Bolívia. A pacificação não vai chegar com bala, com arma, como está sendo feito. A pacificação chegará à Bolívia com diálogo, com participação das Nações Unidas, da Igreja Católica, dos países voluntários como mediadores.
A ideia seria voltar para terminar seu mandato, para organizar um novo processo eleitoral?
Termino meu mandato, garantimos as eleições com um novo processo eleitoral. Mas para isso, primeiro, é preciso pacificar a Bolívia.
E sem Evo como candidato?
Sim. Sabe, quando cheguei à Presidência disse: 5 anos, estava contente, feliz; estive 13 anos, nove meses e 18 dias. Recorde histórico na Bolívia, primeiro presidente indígena sem formação acadêmica, com muita consciência social, com muito compromisso com a pátria. Não quero que vejam novamente crianças como “Evitos” na Bolívia, esse é meu desejo e conseguimos muito: 3 milhões de bolivianos chegaram à classe média em nossa gestão, dos 10 milhões de habitantes que temos na Bolívia. Então, como termina essa obra? Por agora, é terminar minha gestão; depois, claro, os militantes continuarão.
Em quanto tempo se vê de volta à Bolívia?
Depende. Por mim, se contribui para a pacificação, amanhã mesmo, porque me dói que haja tantos mortos, me dói que as Forças Armadas que equipei tanto, que agora têm 25 helicópteros, abusem do povo, não compartilho disso. Digo aos novos comandantes: não se manchem com o sangue do povo, não usem o equipamento das Forças Armadas contra o povo, isso é para defender a pátria; os generais, os comandantes estão errados. Porque sei que são os comandantes e generais, não as tropas.
Mas o tema da Assembleia pedindo que volte, sinceramente, é complicado. Acredita que pedirão sua volta?
A bancada (do Movimento ao Socialismo, partido de Evo) está unida. Se rejeitam minha renúncia, tenho que voltar para estar com o povo, para lutar contra a ditadura, contra o golpe de Estado.
E voltaria mesmo custando sua segurança?
É mais importante estar com o povo, e quero estar com meu povo. Venho dessas bases, dessas grandes lutas, tantas detenções, torturas, confinamentos, não tenho medo. Me dá mais medo que, com algum pretexto, maltratem minha gente.
Qual a sua visão sobre a maneira de governar do presidente Andrés Manuel López Obrador, que possui muitos aspectos similares aos que impulsionou na Bolívia?
— Não quero comentar tanto. Nós, que temos asilo político ou diplomático, não temos muito o que comentar. Tenho muito respeito, muita admiração pelo presidente López Obrador. O conheci quando era candidato, acompanhei através de alguns jornais na Bolívia e não gostaria de interferir em assuntos internos de nossa querida pátria, como é o México.
Houve um triunfo da esquerda na Argentina, houve avanços da esquerda na América Latina, o próprio presidente López Obrador é um representante da esquerda. Considera que a América Latina caminha nessa direção?
— Tenho muita esperança de que um dia tenhamos o ressurgimento das esquerdas na América Latina, como nos melhores momentos com (o ex-presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva), com (o falecido ex-presidente venezuelano Hugo) Chávez; (com o casal presidencial argentino Néstor e Cristina) Kirchner; com (o ex-presidente equatoriano Rafael) Correa; com (o ex-presidente uruguaio José) Mujica. Como nos faz falta um grupo de líderes da América Latina, com (o falecido ex-presidente cubano) Fidel Castro. Sonhávamos com a integração de toda a América Latina e o Caribe. Tenho muita esperança de chegar a um dia como aqueles tempos, com tantos líderes políticos com muita definição ideológica.
* El Universal, do México, integra o Grupo de Diários América, do qual O GLOBO faz parte
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