Contardo Calligaris*
Anos atrás, o psicanalista francês Jacques Lacan se serviu dessa alternativa para explicar o que é uma escolha forçada —que, de fato, nem sequer é uma escolha.
Eis por quê: se eu escolher ficar com a bolsa, não perderei só a vida, mas também a própria bolsa pela qual me sacrifiquei, pois nenhum ladrão vai ser burro a ponto de deixar a bolsa com o meu cadáver.
Então, quem escolhe a bolsa perde a vida e também a bolsa.
Conclusão: só resta escolher a vida e entregar a bolsa. No Brasil, por causa de um gosto antigo pela violência (que talvez tenha penetrado a cultura nacional junto da prática da escravatura), o bandido, às vezes, recebe a bolsa e ainda assim nos dá um tiro de despedida. De qualquer forma, entregando a bolsa, temos ao menos uma chance de ficar com a vida —embora, é claro, uma vida sem a bolsa.
A alternativa de “a bolsa ou a vida?” talvez nos ajude a enxergar a estranheza do debate em curso entre a saúde e a economia diante da pandemia de coronavírus. Deveríamos, por exemplo, proteger as vidas com o maior isolamento social possível? Ou deveríamos aceitar um aumento da taxa de infecção e do número de mortos para preservar a atividade econômica? A vida ou a bolsa?
Parênteses: em outros países, o debate a favor ou contra o isolamento existe como discussão sobre qual caminho poderia, a longo prazo, produzir uma imunidade coletiva e portanto poupar mais vidas.
No Brasil, a questão é apenas sobre a “necessidade” de reabrir o comércio e retomar a atividade econômica.
Voltemos. Há uma diferença considerável entre a alternativa proposta pelo bandido e nossa situação atual. A pergunta do bandido se endereça a uma pessoa só — você, que está sendo assaltado.
Imagine que, na hora do assalto, você esteja com um seu conhecido. Ao serem assaltados, você consegue se entrincheirar numa sala segura, junto com a sua bolsa, mas seu conhecido fica de fora. O bandido pede para você escolher entre a sua bolsa e a vida do conhecido. Qual será sua escolha?
Os que acham que, diante da pandemia, deveríamos escolher a bolsa e sacrificar vidas não estão entrincheirados em abrigos que os protejam da contaminação e de uma morte eventual. Eles apenas se consideram invulneráveis. São crianças atrasadas, convencidas de sua onipotência e da proteção eterna que lhes seria reservada pelo amor de suas mães.
Essa é uma patologia frequente, sobretudo masculina, incômoda para quem tem a desgraça de conviver com o paciente e só realmente perigosa quando o paciente ocupa um cargo de governo, sobretudo executivo.
No governo, a criança onipotente se transforma facilmente num canalha, que, considerando-se invulnerável, está disposto a escolher a bolsa, porque a vida que ele perderia seria sempre a vida dos outros.
Ou seja, os negacionistas acham que deveríamos desistir do isolamento social para preservar a economia e estão dispostos, para isso, a entregar, não a vida deles, mas a vida dos outros. Eles escolhem a bolsa e deixam o bandido (o vírus) matar a quem ele quiser (salvo a eles mesmos, que se imaginam protegidos por serem os eternos bebês maravilhosos de suas mães).
Alguém dirá: então deveríamos escolher a vida e esquecer a bolsa? E como vamos pôr comida na mesa?
Pois bem, é exatamente aqui que se esperariam a existência e a intervenção de um governo. O debate entre privilegiar a saúde ou a economia (a bolsa ou a vida) parece ser uma diversão inventada por um governo que não enxerga sua função crucial, a qual consistiria em administrar as consequências econômicas da única escolha aceitável (a escolha pela vida).
Ou seja, uma vez que só é possível escolher a vida (e não a bolsa), resta a tarefa de sustentar a vida de todos da melhor maneira possível.
Os governos, mundo afora, gastam e gastarão o que têm e o que não têm (sim, há momentos em qualquer administração nos quais é necessário gastar o que não se tem) para que os cidadãos possam proteger suas vidas (e logo retomá-las) sem se preocupar com sua sustentação básica, suas dívidas vencidas, seu aluguel e seus impostos atrasados etc.
Em vez disso, no Brasil, até agora, assistimos a uma comédia patética em que o governo promete, brada e não consegue nem sequer distribuir dignamente uma ajuda irrisória (os famosos R$ 600) sem que a própria distribuição se torne, para muitos, a ocasião de mais uma sinistra exposição ao contágio, em filas de espera.
*Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
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