Fernando Gabeira faz 80 anos na quarta-feira, mas o presente só chega no dia em que este grupo etário for vacinado. Desde 2013 ele percorria o país em reportagens para a Globonews. Confinado há 11 meses em seu apartamento de Ipanema, o repórter Gabeira está ansioso pela vacina, a credencial para a volta ao trabalho nas ruas:
“Existe um PM dentro da minha cabeça, e ele está o tempo todo dizendo ‘Circular, circular...’”
O home office foi na companhia da mulher, a programadora digital Neila Tavares, e os gatos Nino, Tyrone, Tasha e Belinha. Gabeira acorda 7h30m e, atento às amêndoas que nesta época caem das árvores e provocam derrapagens, segue de bicicleta até a piscina do Flamengo. Nada mil metros. O lugar mais longe onde esteve na pandemia foi Copacabana, para aulas de alongamento. De resto, trancou-se, o que não o livrou da Covid branda.
“É bom chegar aos 80 se sentindo razoavelmente capaz”, diz, “podendo trabalhar, aproveitar a vida ainda que seja no nível mais modesto de contemplar a natureza, de respirar bem, ter relação com a família.”
Gabeira escreve uma coluna semanal para O GLOBO e outra para o Estado de S. Paulo, faz podcast com Lauro Jardim, alimenta o blog Diário da Crise, comenta na Globonews e prepara livro. Vai misturar suas andanças com as dos viajantes estrangeiros pelo Brasil. Semana passada, lia a biografia do aventureiro inglês Richard Francis Burton, o primeiro a descer de canoa o Rio São Francisco.
“Eu sou um apaixonado pelo Brasil”, diz, “e essa vontade de documentar o país me mantém animado”.
Vacinado, Gabeira pretende voltar a “circular” já em março. A primeira pauta pode ser, literalmente, ir para a estrada – investigar os danos da pandemia entre andarilhos na Rio-São Paulo:
“Cresceu muito o número deles”, diz. “O andarilho quando perde a perspectiva não vai de um lugar para o outro por uma decisão. Ele sai em desespero. O que vai para a rua ainda conversa com o homem da padaria, tem sociabilidade. A sobrevivência na estrada é mais difícil, o isolamento é radical. Alguns andarilhos ultrapassam a fronteira da lucidez e começam a delirar.”
Gabeira também faz a câmera de suas matérias, mexendo em máquinas de sofisticada tecnologia digital. No Rio, usa uma Lumix. Fotografa o cotidiano e publica no Instagram.
“Faço documentários sobre moradores de rua”, diz. “Ipanema exprime hoje o drama social das pessoas procurando ajuda. Eu acompanhava a trajetória de alguns, mas agora são muitos, já não os conheço. Cultivo certas ruas onde os porteiros colocam orquídeas nas árvores. Quando venho de Copacabana e entro no Corte é como se saísse de uma área urbana para outra mais arejada. Ainda sinto cheiro de mato em Ipanema”.
Gabeira mora aos pés do Cantagalo (“bons vizinhos, embora os pastores de vez em quando exagerem no volume”), frequenta feiras do bairro e, quando era possível, os restaurantes de comida natural (“tenho prazer no arroz integral, mas sinto preguiça em dizer o que as pessoas devem comer”). Anda numa bike americana fabricada na China, modelo modesto escolhido para substituir a Specialized, roubada por assaltante armado de revólver.
“Temos uma rede de ciclovia interessante”, diz, “mas pode melhorar. Nas ruas internas de Ipanema, podiam tirar o estacionamento de carro de um dos lados e ampliar o espaço para as bicicletas trafegarem, sem serem forçadas a subir na calçada.”
O dia do aniversário será rotineiro, preenchido apenas pelos telefonemas dos amigos, das filhas Maya (surfista de ondas gigantes, morando em Portugal) e Tani (professora da Escola Corcovado), que lhe deu o neto, Léo. Dormirá por volta da meia-noite depois de assistir algum documentário. Viu o de Fran Leibowitz sobre a “decadência” de Nova York (“conservadorismo com humor é mais fácil de absorver”) e o de Joan Didion com o título de “The center will not hold”, inspirado num poema de Yeats. Perguntado se as definições de esquerda e direita desapareceram, e onde ele se encaixa, Gabeira lembrou do verso:
“O centro aqui não se sustenta”, diz. “Não temos a estrutura americana, onde a direita está com Trump e a esquerda com Biden. A radicalização aqui é pela falta do centro. Cabe à gente ver como as forças se aproximam das exigências de cada um. As minhas são as ligadas à questão ambiental, do racismo, da justiça social, dos direitos humanos. Não existe cristalinamente uma força que represente isso. Então, você apoia certas iniciativas, independente de concordar com tudo.”
Gabeira teve quatro mandatos de deputado federal (PT e PV). Ele analisa com rigor os efeitos da atuação de sua geração sobre o momento político:
“O processo de redemocratização em que me envolvi deu na ascensão da direita radical”, diz. “Fomos todos responsáveis por esses erros. A realização de eleições caras foi um deles, por associar política com grupos econômicos próximos do estado. Deu nisso. O financiamento ficou mais importante do que a fidelidade com o eleitor. A decadência resultou na falsa alternativa de renovação pela extrema direita, e voltamos ao impasse da redemocratização.”
Gabeira fala em voz tranquila, um pé plantado sobre a cadeira, enquanto os gatos miam ao redor. Há uma cesta de palha cheia de rolo de lã para eles se divertirem. Tempos atrás, identificando-se com os existencialistas, concordou que a vida não tinha sentido, mas era preciso procurar algum. Aos 80 anos, encontrou? Onde foi parar a utopia dos revolucionários?
“A família, o desenvolvimento dos afetos, a contribuição política, tudo isso dá sentido à vida”, diz. “Eu hoje questiono a busca da utopia. Ela foi responsável por muitas mortes. Em ‘O apanhador no campo de centeio’, alguém promete dar a vida pela revolução, enquanto o outro quer viver para contribuir com o processo da revolução. Eu prefiro reconhecer, humilde, a necessidade de mudar a realidade de forma constante, dentro dos limites. A gente falava no novo homem e, percebe-se agora, ele é parecido com os que Shakespeare descreveu. O novo homem, completamente despojado de seus erros, é uma ficção
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