Observatório do Cotidiano

Reflexões e artigos sobre o dia a dia, livros, filmes, política, eventos e os principais acontecimentos

terça-feira, 24 de junho de 2025

“O maior palco sem o protagonista- Um espetáculo de ausências”


Rivelino Liberalino*

Petrolina está linda. O palco é monumental. As luzes, impecáveis. A cenografia, de encher os olhos. O investimento, digno de nota. A multidão, viva, alegre, vibrante. Mas falta algo. Falta o que não se compra com edital, com patrocínio ou com produção de marketing. Falta o dono da festa.

Na abertura do São João de Petrolina, em 13 de junho, o que se viu foi uma sucessão de estrelas — mas nenhuma delas brilhou com a luz da sanfona. Nenhuma nasceu do chão quente do sertão. Nenhuma cantou o xote, o baião, a história de um povo que aprendeu a transformar dor em dança, escassez em celebração, saudade em canção.

Não vimos um só sanfoneiro. Nenhum fole, nenhum triângulo, nenhuma zabumba. Nenhuma alma nordestina no centro do palco. E o que mais assusta não é a ausência em si — é o silêncio cúmplice de quem assiste e aplaude, como se tudo estivesse bem. Como se forró fosse acessório, e não essência. Como se a raiz fosse descartável, e não sagrada. A pergunta que não quer calar é: desde quando o dono da casa precisa de convite para entrar em sua própria festa?

Enquanto Flávio Leandro canta verdades sobre o sertão nos bastidores, artistas de fora, com cardápio musical comercial, ocupam os holofotes com hits que não dizem nada sobre nós. Enquanto Dorgival Dantas emociona multidões com seu xote sincero, é ignorado em festas que se dizem “juninas”. Enquanto Elba Ramalho segue sendo altar de brasilidade e ancestralidade, preferem-se nomes do momento que sequer sabem diferenciar um arrasta-pé de um axé. Não se trata de bairrismo. Trata-se de respeito. O São João não é apenas uma grade de atrações. É um rito. É um código de memória coletiva.

Desfigurá-lo não é modernizar. É profanar. Trazer artistas de fora, sem espaço para os mestres do forró, é como montar um presépio sem o menino Jesus. É encenar uma ópera sem músicos. É organizar um velório da nossa cultura com palmas e fogos. E, veja bem: não é proibição que se pede — é equilíbrio. Não é fechar as portas à diversidade — é não expulsar o que é nosso do centro da festa.

Estamos confundindo modernidade com amnésia. Estamos embalando o esquecimento com som de caixa eletrônica. Estamos permitindo que o São João, nossa celebração mais simbólica, se torne um produto genérico, embalado a vácuo, pronto para exportação — sem cheiro de milho assado, sem cheiro de fogueira, sem sotaque. A cultura não é um detalhe. É a alma de um povo. E aqui é necessário fazer uma ressalva justa e honesta: este artigo não tem qualquer cunho político-partidário. Pelo contrário, reconhece e parabeniza a atual administração e os gestores públicos de Petrolina pela estrutura monumental da festa — que, sem dúvida, reflete a pujança e o crescimento da cidade.

O que aqui se expressa é apenas um apelo — sereno, mas firme — para que essa mesma grandeza se estenda também à preservação da nossa cultura. Que a beleza da festa abrace também a beleza da nossa identidade. Nada mais. Nada menos.E, quando se tira a alma de uma festa, o que resta é só o barulho.Petrolina tem o maior palco do São João, mas está deixando vazio o seu coração. Ainda há tempo de reconduzir o protagonista ao centro da cena. Ainda há tempo de ouvir a sanfona. Ainda há tempo de ensinar às novas gerações que forró não é passado — é permanência. Que Flávio Leandro, Elba, Maciel Melo, Dorgival, Petrúcio, Targino, Flávio José não são relicários. São vivos, urgentes, necessários.

Nordeste que esquece sua raiz está pronto para ser podado. E pior: aplaude o corte. Que essa festa tão linda não se transforme em um espetáculo de ausências. Que o maior palco volte a ser sagrado. E que o povo volte a dançar — não por vaidade, mas por identidade.

*Rivelino Liberalino é advogado

**Entre as atrações, sem vínculos com as músicas do  São Joao: Léo Santana, Ana Castela, Jorge & Mateus, Nattan, Bruno & Marrone e Bell Marques.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Unidade e Fragilidade do Irã


As primeiras horas de 13 de junho de 2025 destruíram qualquer ilusão de trégua diplomática no Oriente Médio. A Operação Leão em Ascensão , de Israel — um ataque meticulosamente coordenado a instalações nucleares, bases militares e alvos de liderança iranianos — matou comandantes de alto escalão, incluindo o general Mohammad Bagheri, e cientistas essenciais para os programas estratégicos de Teerã.

Os agentes do Mossad passaram meses instalando munições guiadas perto de locais de defesa aérea iraniana, explorando brechas na cobertura de radar ao longo das Montanhas Zagros. Quando os primeiros mísseis atingiram o alvo, atingiram não apenas instalações, mas também a psique de uma nação já cambaleante após anos de sanções americanas.

A reação da sociedade civil iraniana misturou desafio com crítica sóbria. Ardeshir Amir-Arjmand, um notável dissidente e ex-assessor de Mir Hossein Mousavi, o líder do Movimento Verde de 2009 que permanece em prisão domiciliar, descreveu o ataque como "uma violação da integridade territorial e um crime contra a humanidade". Ele escreveu : "O Irã e os iranianos não se curvarão à agressão. A luta contra o despotismo interno não deve justificar a agressão contra nosso país". Amir-Arjmand encerrou sua mensagem com "Vida longa ao Irã". Grupos de oposição como o Partido União da Nação condenaram os ataques como uma "violação do direito internacional", mas alertaram contra retaliações imprudentes. "Atacar bases americanas ou civis israelenses transformaria a OTAN em guarda-costas de Tel Aviv", alertou o líder do partido, Azar Mansouri . Seu pragmatismo contrastava com o dos exilados monarquistas, que veem a vulnerabilidade do regime como um catalisador para uma nova revolução. Veículos de comunicação da diáspora, como a Iran International TV, amplificaram as narrativas israelenses, enquadrando os ataques como "a libertação do Irã da teocracia". O analista exilado Ali Afshari respondeu: "O ataque de Israel é uma agressão, não uma defesa legítima. Aclamar os ataques israelenses como legítimos é traição."

Para reformistas veteranos como Mohammad Tavassoli — figura-chave na revolução iraniana de 1979, que mais tarde criticou a teocracia excessiva — as greves exigiam um equilíbrio delicado. Tavassoli enquadrou a defesa do Irã como um "dever cívico que transcende a política", mas criticou as políticas isolacionistas do regime. "Quando fechamos nossas embaixadas na década de 1980, não percebemos que estávamos bloqueando o mundo enquanto deixávamos os inimigos explorarem nossas fechaduras", disse ele. Sua metáfora sublinhou um consenso reformista: a unidade nacional não precisa significar silêncio sobre as falhas de governança.

O Movimento pela Liberdade do Irã, um apoiador da revolução de 1979 que mais tarde foi marginalizado pelos clérigos governantes, alertou explicitamente que a escalada "destruiria a infraestrutura e aprofundaria a pobreza", enquanto o dissidente Ghasem Sholeh-Saadi observou que "esperar que Israel derrube o regime é como acolher gafanhotos para salvar as plantações". O proeminente jornalista Ahmad Zeidabadi, preso antes e durante o Movimento Verde, lamentou a morte do general Bagheri como "uma perda para a memória institucional do Irã", mas condenou os lapsos de inteligência: "Um estado que gasta bilhões vigiando sua juventude, mas não percebe drones sobre Isfahan, traiu seu mandato principal: a proteção". O ativista Mohammad Ali Abtahi ecoou : "Os iranianos vivenciam seus momentos mais unidos ao defender o Irã contra ataques estrangeiros".

Essa clareza moral — que distingue entre a nação iraniana e seus governantes — tornou-se um manifesto silencioso para os reformistas. Mohammad Fazeli, cuja obra de uma vida inteira criticou a governança da República Islâmica e que enfrentou expulsões universitárias, declarou : “Diante de ataques inimigos estrangeiros, apenas o Irã, a vida iraniana, os bens do Irã e a unidade nacional importam. O Irã deve permanecer para que possamos nos esforçar para construí-lo de dentro para fora. #Irã_você_permanece, nosso lar.”

As vulnerabilidades do regime, há muito obscurecidas pela propaganda, ficaram evidentes sob o fogo de mísseis. A penetração da inteligência israelense — exposta pela precisão dos alvos no esconderijo do General Bagheri e nas casas de cientistas nucleares — expôs falhas catastróficas de segurança. "Como um regime que monitora os telefones de jornalistas pode não perceber drones voando sobre Teerã?", questionou um economista sob condição de anonimato. Para muitos, isso evidenciou uma podridão mais profunda: um aparato de inteligência militar projetado para esmagar a dissidência interna, e não para frustrar ameaças externas. O ex-presidente Mohammad Khatami resumiu isso sucintamente em um comentário posteriormente apagado. "O sucesso de Israel é a nossa vergonha... Hoje, estamos com o Almirante Sayari. Amanhã, exigimos respostas."

A advogada de direitos humanos presa, Nasrin Sotoudeh, ecoou essa dualidade: "Defendemos o solo do Irã, não os erros de seus governantes". Suas palavras sugeriram um acerto de contas futuro: quando as bombas pararem, a unidade do Irã poderá se fragmentar novamente, com demandas por justiça tanto contra o regime quanto contra seus agressores estrangeiros.

Acima de tudo, o medo se intensificou. Blecautes de internet geraram pânico enquanto famílias lutavam para localizar seus entes queridos, e estradas congestionadascom moradores de Teerã fugindo da capital. O colapso econômico se aproximava; o rial, que vinha se desvalorizando há muito tempo, despencou 30% da noite para o dia , e as filas por pão aumentaram. "Sobrevivemos aos produtos químicos de Saddam", disse um professor aposentado sob condição de anonimato. "Sobreviveremos a isso, mas o regime precisa mudar."

Por enquanto, a guerra de Israel forjou um pacto tácito entre o povo iraniano e seus governantes: sobreviver hoje, acertar contas amanhã. Mas, em uma terra onde a história pesa como montanhas, essa frágil unidade pode ser o ato final da mudança estrutural — ou seu prelúdio.

O caminho do Irã para a democracia depende da evolução orgânica — não de choques externos. A verdadeira transformação exige que os iranianos defendam sua soberania e exijam reformas — uma tarefa que nenhum míssil estrangeiro pode realizar. Até agora, o regime perdura, protegido pelas crises que ajudou a criar.

* O autor do texto pediu anonimato;

** Fotos do líder supremo Ayatolá Ali Khamenei, e do opositor moderado Mohammad Khatami


quinta-feira, 12 de junho de 2025

O que poderia ter causado a queda do avião da Air India em 30 segundos?


 O que exatamente aconteceu com o voo AI171 entre Ahmedabad e Londres Gatwick na tarde de quinta-feira só será revelado por uma investigação detalhada, mas os momentos após a decolagem podem ser os mais desafiadores na aviação.

Investigadores indianos serão acompanhados por especialistas dos EUA e do Reino Unido nos próximos dias, enquanto as autoridades tentam estabelecer o que causou a queda do Boeing 787-8 Dreamliner logo após a decolagem, a apenas 1,5 km da pista do Aeroporto Internacional Sardar Vallabhbhai Patel.
É a primeira vez que um 787-8 Dreamliner sofre um acidente fatal desde que entrou em serviço comercial em 2011. O desastre de quinta-feira matou 241 pessoas a bordo e mais em solo.
A BBC conversou com especialistas em aviação e também com pilotos baseados na Índia — alguns dos quais falaram sob condição de anonimato — que regularmente voam com os 787-8s partindo dos aeroportos internacionais da Índia para descobrir quais fatores podem ter causado a colisão do avião com prédios residenciais no coração de Ahmedabad, poucos momentos após o início do voo.

Lutou para ganhar altitude

O 787-8 Dreamliner foi pilotado pelo Capitão Sumeet Sabharwal e seu copiloto Clive Kundar. Os dois eram altamente experientes, com mais de 9.000 horas de voo combinadas. O Sr. Sabharwal acumulou mais de 22 anos de experiência como piloto de linha aérea comercial.
O avião transportava 242 pessoas enquanto taxiava pela pista do Aeroporto Internacional de Ahmedabad na tarde de quinta-feira. O jato decolou às 13h39, horário local (08h09 GMT), informou a operadora Air India.
O Ministro do Interior da Índia, Amit Shah, disse que o avião transportava 100 toneladas de combustível – praticamente a carga completa – ao decolar de Ahmedabad.
Quase imediatamente após a decolagem, a cabine emitiu um sinal de socorro, informou o órgão regulador da aviação da Índia. A aeronave não respondeu mais a isso. Não está claro o que motivou o sinal de socorro, mas o único sobrevivente do voo disse à mídia indiana que ouviu um forte estrondo enquanto o avião lutava para ganhar altitude.
Imagens autenticadas pela BBC Verify mostraram o avião voando baixo sobre o que parece ser um bairro residencial. Os dados finais transmitidos mostraram que o avião atingiu uma altitude de 190 m. Ele desceu e ficou escondido por árvores e prédios, antes de uma grande explosão surgir no horizonte.

Especulação sobre falha "muito rara" de dois motores
É quase impossível estabelecer definitivamente a causa do desastre com base nos vídeos do breve voo do avião. Nos próximos dias, uma investigação complexa envolvendo a caixa-preta do avião – que registra os dados do voo – e um exame dos destroços será iniciada. Mas vídeos que surgiram mostram o avião com dificuldades para decolar, aparentemente devido à falta de propulsão ou potência. Uma causa que tem sido especulada por alguns especialistas é a possibilidade de uma falha extremamente rara de dois motores. Questiona-se se a turbina Ram Air (RAT) do avião estava acionada, uma turbina reserva de emergência que entra em ação quando os motores principais falham em gerar energia para os sistemas essenciais.
Falhas em dois motores são quase inéditas, sendo o exemplo mais notável o "Milagre no Hudson" de 2009, quando um Airbus A320 da US Airways perdeu ambos os motores em uma colisão com pássaros momentos após a decolagem do Aeroporto LaGuardia, em Nova York, mas voou em segurança.
Um piloto experiente disse à BBC que falhas em dois motores também podem resultar de contaminação ou entupimento do combustível. Motores de aeronaves dependem de um sistema preciso de medição de combustível – se esse sistema for bloqueado, pode levar à falta de combustível e ao desligamento do motor.
Marco Chan, ex-piloto, disse à BBC Verify que não há nenhuma evidência que sugira uma falha em dois motores com base nas imagens disponíveis.
Mohan Ranganathan, especialista em aviação, disse à BBC que uma falha em dois motores seria "um incidente muito, muito raro".
Colisões com pássaros

Outra possibilidade levantada por alguns especialistas na Índia é a colisão com pássaros.
Elas ocorrem quando um avião colide com um pássaro e podem ser extremamente perigosas para as aeronaves. Em casos graves, os motores podem perder potência se sugarem um pássaro, como aconteceu no desastre aéreo de Jeju, na Coreia do Sul, que matou 179 pessoas no ano passado.
Especialistas e pilotos familiarizados com o aeroporto de Ahmedabad disseram à BBC que ele é "notório por pássaros".
"Eles estão sempre por perto", diz Ranganathan, repetindo o que pelo menos três pilotos indianos que voaram para dentro e para fora do aeroporto disseram à BBC.
O estado de Gujarat, onde Ahmedabad está localizado, relatou 462 incidentes de colisão com pássaros ao longo de cinco anos, com a maioria ocorrendo no aeroporto de Ahmedabad, de acordo com dados do Ministério da Aviação Civil apresentados ao Parlamento em dezembro de 2023.
Uma reportagem do Times of India de setembro de 2023 citou dados da Autoridade Aeroportuária que apontavam 38 colisões com pássaros em 2022-23 em Ahmedabad, um aumento de 35% em relação aos 12 meses anteriores.
No caso de 2009, um bando de gaivotas foi engolido a 825 metros de altitude – mais de quatro vezes mais alto do que o voo da Air India. Neste caso, os pilotos indianos não tinham altitude nem tempo para manobrar.
No entanto, um piloto sênior afirmou que uma colisão com um pássaro raramente é catastrófica, "a menos que afete ambos os motores".
Será que os flaps do avião contribuíram?

Três especialistas que conversaram com a BBC Verify sugeriram que o desastre pode ter ocorrido porque os flaps da aeronave não foram estendidos durante a decolagem — embora outros pilotos e analistas tenham contestado essa hipótese.
Os flaps desempenham um papel vital durante a decolagem, ajudando a aeronave a gerar sustentação máxima em velocidades mais baixas.
Se não forem estendidos corretamente, um jato totalmente carregado — transportando passageiros, combustível pesado para um voo de longa distância e enfrentando condições de calor intenso — terá dificuldade para decolar.

Em Ahmedabad, onde as temperaturas se aproximaram dos 40°C (104°F) na quinta-feira, o ar mais rarefeito teria exigido ajustes mais altos dos flaps e maior empuxo do motor, disse um piloto à BBC. Nessas condições, mesmo um pequeno erro de configuração pode ter consequências catastróficas.
Imagens de câmeras de segurança divulgadas no final da tarde de quinta-feira mostraram o avião decolando de Ahmedabad, lutando para atingir altitude e, em seguida, descendo lentamente antes de cair.
O ex-piloto Sr. Chan disse à BBC Verify que as imagens divulgadas até o momento estão distorcidas demais para estabelecer com certeza se os flaps estavam estendidos, mas afirmou que tal erro seria "altamente incomum".
"Os flaps são ajustados pelos próprios pilotos, antes da decolagem, e há várias listas de verificação e procedimentos para verificar a configuração", disse o Sr. Chan. "Isso indicaria um potencial erro humano se os flaps não forem ajustados corretamente."

* Reportagem adicional de Jake Horton

quarta-feira, 11 de junho de 2025

O meu melhor amigo


Arnaldo Jabor*

Não estou mais com 8 ou 10 anos e acabo de entrar na universidade. Lembranças surgem e somem na minha cabeça. Hoje me lembrei do Nelson: "Genial!" - ele disse, perto de mim, sobre um filme que estava passando. Acho que foi "A Aventura", de Antonioni. Ergui os olhos e vi, pela primeira vez, aquele que virou meu melhor amigo. Eu me sentia deslocado entre tantos colegas já de terno e gravata, prontos para a vida de advogados. Nelson me pareceu irmão de infortúnios, de loucura, eu que odiava as aulas de direito num país onde a lei (eu já sentia) era uma piada.


Vivíamos entre duas revoluções: a revolução política e a revolução sexual. A pílula ainda não tinha chegado, mas já havia um clima de temerosa liberdade: os "amassos" eram mais fortes nos automóveis, os vestidos eram mais curtos e sentíamos que em breve amor e sexo seriam diferentes.

As meninas deixavam quase tudo, mas enguiçavam na porta dos apartamentos - naquela época, a gravidez solteira era doença venérea. Eu tive uma namorada, não mais virgem, que nunca me permitiu repetir o feito do "ex", na ilusão de "reconstituir" a inocência perdida.

Uma outra se entregava loucamente, de olhos em alvo, com gemidos de angústia, simulando um "desmaio" que a absolvia do consentimento, como se não fosse ela que estivesse ali.

Mas, Nelson, esse se apaixonava. Seus namoros eram de pierrô - mãos dadas, beijos trêmulos. Ele não era feio, mas sua calvície, precoce, sua inteligência esmagava as meninas em conversas infinitas, sua leve obesidade em calças de tergal herdadas do pai, sem a menor vaidade masculina, afastava possíveis namoradas.

Nelson não era gay. Ao contrário, mostrava interesse demais pelas moças e não exibia o típico distanciamento viril, para se fazer desejado. Em conversas ansiosas, elas percebiam sua insegurança denegada, em sua simpatia percebiam o medo e, assim, ficavam suas amigas, mas nunca amantes, enquanto os cafajestes juvenis levavam-nas para mãos nos peitos, sutiãs rasgados, calças arriadas nos bancos de trás dos carros.

Nossa amizade crescia na fome de literatura. "Quero fazer arte séria!", ele dizia, berrando poemas nas noites estreladas, com sua voz arfante: "April is the cruellest month (...) mixing memory and desire! Genial! Genial!".

Um dia, chegou a pílula e, com ela, amores famintos, os motéis, orgasmos nas noites, os biquínis, os peitos de fora, o fim da aura de pureza ou inocência, beijos de língua, corpos nus entrelaçados.

Nelson apareceu com uma namorada. Era uma garota de roupa muito justa, levemente estrábica, uma sensualidade enleante, visível orgulho de seus seios empinados, parecendo gostar muito do Nelson que a cobria de gentilezas, beijos leves, abraços apertados e uma alegria imensa no rosto. Estava mais adulto, confiante.

"E ai?" - perguntei - "cabaço?".

Ele ficou encabulado. "Não...teve um namorado...".

"Então, o virgem é você!" - sacaneei.

Ele riu alto e arfou: "Isso! Rimbaud: ‘Par delicatesse, j’ai perdu ma vie! Genial! Genial!’". E aí, sumiu durante um tempo. Vivia nos balcões dos cinemas, aos beijos sem fim, sob a luz vigilante dos lanterninhas. Passaram-se uns meses e, um dia, ele me procurou de novo.

Estava mudado. Disse que ia trabalhar num escritório, usava um terno cinzento e uma gravata torta e seus olhos mostravam uma tristeza imensa. Estranhei quando me levou à sua casa e me deu sua coleção dos "Cahiers du Cinema", amarelos, que até hoje guardo. "Que é isso, Nelson? Os Cahiers?".

"Já li tudo, pode levar...", disse, como se desistisse de alguma coisa.

Na sala, a empregada preta servindo café, um pai gordo e tristíssimo vendo a televisão em preto e branco, a mãe lendo a "Manchete", tudo sob luzes mortiças e quadros feios, móveis escuros, cortinas ventando como velas de um barco parado.

Entendi de onde vinha a ansiedade do Nelson, querendo respirar a vida. Na porta do elevador, perguntei: "E aí? E a namorada?".

Seu rosto ficou sombrio. "Esta aí, estamos nos vendo...".

Ele sumiu de novo e fui tocando a vida.

Um dia, a garota (Mariana, creio) me apareceu no pequeno apartamento de meu pai em Copacabana, para onde eu fugia. Ela entrou agitada, sem cerimônia, cruzou as pernas fumando e falando sem parar, elogiando muito a bondade do Nelson, sua inteligência, mas acabou dando a entender que a relação estava impossível, que não dava mais, que ele era o máximo, mas...

"Mas, o quê..?".

"Não dá mais... ele não consegue, fica chorando com as mãos no rosto, chorando na beira da cama, dizendo que não consegue, chorando nu, sem parar".

Mariana caiu em prantos e se agarrou em mim, soluçando. Seus seios (seu orgulho) arfavam contra meu corpo e suas lágrimas me molhavam o rosto, que ela começou a beijar febrilmente até a cama onde caímos naquela tarde chuvosa. Foi tudo muito intenso e rápido e ela saiu fumando nervosamente.

Não sabia por onde andava o Nelson, e isso me aliviava, pois ele trabalhava mesmo num escritório de advocacia na Cinelândia.

Passaram uns meses e foi então que tive meu primeiro contato com a tragédia.
Pelo telefone, me chega a notícia de que Nelson tinha morrido. O lanterninha o encontrou imóvel, com seu terno cinzento. Ele morrera do coração silenciosamente, aos 23 anos, dentro de um cinema, sozinho.

Eu nunca tinha visto um morto e, nublado por minhas lágrimas, lá estava seu rosto pálido rodeado de flores. A desgraça era absurda e sua família gemia de dor, sem entender como aquilo podia ter acontecido. As pessoas me olhavam espantadas,porque eu chorava abertamente, de rosto erguido para todos verem e experimentava um estranho prazer em deixar as lágrimas rolando sem parar, pois eu queria que todos me vissem, eu me orgulhava do pranto, quase vergonhoso, excessivo. Muitos estranhavam tanta dor. 

Creio mesmo que exagerei conscientemente meus soluços. Não sabia por que chorava tanto, mas sabia que tinha de chorar. Hoje, me lembrando, entendo tudo, claro.

Nelson morrera assistindo a "Palavras ao Vento", de Douglas Sirk, com Lauren Bacall e Rock Hudson, em reprise no Pathé. "Genial!" - ele teria dito se me encontrasse depois.
 * Cineasta, cronista e jornalista, faleceu em  15-02-2022


sábado, 7 de junho de 2025

O caso Madeleine


O desaparecimento da menina inglesa Madeleine McCann, de 3 anos, ocorreu em 3 de maio de 2007, em Praia da Luz, uma vila turística no Algarve, sul de Portugal, e permanece até hoje como um dos casos mais emblemáticos e controversos de desaparecimento infantil no mundo.

🕰️ O que aconteceu:

A família McCann — os pais Kate e Gerry, ambos médicos, e seus três filhos — estavam de férias num resort chamado Ocean Club.

Na noite de 3 de maio, por volta das 20h30, os pais foram jantar com amigos num restaurante a cerca de 50 metros do apartamento em que estavam hospedados, deixando os filhos dormindo sozinhos no quarto.

O grupo de adultos fez um revezamento para checar as crianças periodicamente.

Às 22h, Kate McCann voltou ao apartamento e percebeu que Madeleine havia desaparecido. A janela do quarto estava aberta.

🕵️‍♂️ Investigações iniciais:

A polícia portuguesa iniciou buscas imediatas, mas enfrentou críticas por atrasos, erros de perícia e falta de controle da cena do crime.

Foram consideradas diversas hipóteses:

Sequestro por um pedófilo ou rede de tráfico infantil.

Acidente seguido de encobrimento.

Responsabilidade dos pais (hipótese que mais tarde gerou polêmica).

🔥 Pais como arguidos (suspeitos):

Em setembro de 2007, os pais chegaram a ser formalmente declarados “arguidos” (suspeitos) pela polícia portuguesa.

Essa suspeita foi fortemente contestada, e mais tarde revogada. Não há provas conclusivas de envolvimento dos pais.

A imprensa britânica deu ampla cobertura, e o caso se tornou um fenômeno midiático internacional.

🔎 Desdobramentos posteriores:

A polícia britânica iniciou sua própria investigação (”Operação Grange”) em 2011.

Em 2020, um novo suspeito foi apontado: Christian Brückner, um cidadão alemão com histórico de crimes sexuais, que estava na região no período do desaparecimento.

Em 2022, ele foi formalmente declarado suspeito oficial (“arguido”) pelas autoridades portuguesas, mas até 2025 nenhuma acusação formal foi feita relacionada diretamente ao caso de Madeleine.

❗ Situação atual (junho de 2025):

Madeleine ainda está desaparecida.

O caso permanece sem solução definitiva.

É considerado um dos maiores mistérios criminais modernos.


                            Kate e Garry Maccain, pais de Madeleine

Autoridades portuguesas abriram uma nova linha de investigação relacionada ao desaparecimento de Madeleine McCann após uma denúncia feita pela irmã de um cidadão britânico, já falecido. A mulher, residente no Reino Unido, levantou a hipótese de que o irmão, supostamente alcoolizado, teria atropelado a criança na noite do desaparecimento, ocorrido em 3 de maio de 2007, no Algarve, sul de Portugal.

Segundo o jornal português Correio da Manhã, o britânico e sua esposa alemã, ambos descritos como alcoólatras por testemunhas, viviam nas proximidades do Ocean Club, resort onde a família McCann estava hospedada. A irmã relatou que o homem carregava, desde então, um “segredo doloroso” e suspeitava de seu envolvimento no caso.

A denúncia chegou à polícia britânica em 2018 e motivou a solicitação de uma operação sigilosa às autoridades alemãs. A proposta era infiltrar um agente disfarçado para se aproximar da esposa do suspeito, com o objetivo de obter uma possível confissão. No entanto, a Justiça alemã recusou o pedido e decidiu manter o foco apenas no então principal suspeito Christian Brueckner.

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