César Felício*
Faltavam dez dias para o primeiro turno das eleições presidenciais no Peru em 1990 e o escritor Mario Vargas Llosa estava no patamar de 40% das intenções de voto. Dois adversários brigavam pelo segundo posto, entre 15% e 20% e aquele que veio a ser o prêmio Nobel de Literatura deste ano sonhava com a vitória na primeira votação. Foi quando se preparava para um comício em Cuzco que recebeu um telefonema de seu marqueteiro. Vargas Llosa ouvia pela primeira vez o relato de uma surpresa monumental.
"Tinham acabado de receber a última pesquisa e nos bairros de periferia e favelas de Lima - 60% da população da capital - o candidato Alberto Fujimori decolara de forma vertiginosa", segundo escreveu em sua autobiografia "Peixe na Água". A perplexidade era evidente: "perguntei quem era e de onde vinha esse Fujimori, que parecia começar a existir como candidato. Até aquele momento, não acredito ter pensado nele uma vez que fosse". Líder de uma coalizão que pregava um choque econômico neoliberal, Vargas Llosa terminou com magros 29% dos votos no primeiro turno, cinco pontos percentuais a frente de Fujimori.
No segundo turno, coube a Vargas Llosa vivenciar uma experiência rara em eleições presidenciais no mundo: a de sofrer uma virada. O escritor obteve 60 dias depois 34% do total. As diferenças entre a história do Peru em 1990 e a do Brasil de hoje são evidentes, a começar do fato de que Vargas Llosa era um candidato de oposição a um governo impopular. Guardadas as proporções, o segundo turno entre Vargas Llosa e Fujimori equivaleria no Brasil a uma disputa entre José Serra e Tiririca. Mas o relato confessional de Vargas Llosa sobre o choque que um segundo turno leva a quem não o esperava nos remetem a perplexidades do presente.
Vargas Llosa preso na teia do falso debate
A começar do espanto. O então líder nas pesquisas se instalou na suíte do andar mais alto do Sheraton com sua família e ficou meditando nos cinco anos em que teria que deixar a literatura para governar o Peru. Ao receber a primeira projeção, relata Vargas Llosa, "percebi a catástrofe: não era necessário ter o dom da profecia para adivinhar o futuro. Haveria um segundo turno". O escritor desce ao saguão. "O hotel estava com uma atmosfera fúnebre. Nos corredores, expressões de indescritível surpresa e algumas, também de fúria. Quando consegui falar, agradeci a 'vitória'".
Vargas Llosa em seguida cometeu um erro político: calculou que era melhor pactuar um apoio a Fujimori do que assistir a seu adversário negociar com Alan García, o presidente peruano de então e que está hoje novamente no poder. Mas recuou ao perceber que poderia ter o apoio da Igreja Católica na segunda rodada, já que Fujimori tinha sólido suporte evangélico. Era o momento em que começava a se aprofundar a distância entre o que o candidato era e o que tinha que parecer ser.
A eleição peruana passou a girar em torno da religião, ainda que Vargas Llosa fosse, e provavelmente ainda é, um agnóstico público. "O processo tomaria um rumo que me fez sentir preso na armadilha de uma teia de mal-entendidos (...)a partir desse momento, a luta eleitoral foi adotando uma fisionomia de guerra religiosa, em que os ingênuos temores, os preconceitos e as armas limpas se misturavam aos sujos e aos golpes baixos e as mais pérfidas manobras de um e de outro lado, a extremos que beiravam a farsa e o surrealismo", comentou o escritor, posto literalmente de joelhos pela conveniência política. Sua campanha passou a ser movida a procissões. E não ficou nisso: "Era indispensável uma campanha negativa contra Fujimori (...) pude intuir os escabrosos níveis de imundície em que tanto meus partidários como meus adversários haveriam de incorrer nas semanas subsequentes".
Da religião passou-se para a família. Teve de tudo: acusações de exploração de lenocínio, incesto e consumo de drogas foram algumas citadas por Vargas Llosa, tendo ora sua campanha como vítima, ora como algoz. O escritor, acostumado a ambientes selecionados, se transformou em outra pessoa. "Para demolir a imagem de homem arrogante e distanciado do povo (...) ficou decidido que, naquela segunda etapa, eu não faria as caminhadas protegido por guarda-costas. Estes iriam mais adiante, dispersos na multidão, que poderia aproximar-se de mim, apertar a minha mão, tocar-me e abraçar-me e também, às vezes, arrancar pedaços de minha roupa ou derrubar-me ao chão e me arrebentar, se tivessem ganas".
Passou-se a apostar todas as fichas no debate, o que Vargas Llosa chamou de "ponto culminante"do segundo turno. Sua participação foi marcada pela agressividade. Chegou a citar até a queda da produção leiteira das vacas da escola de agronomia na universidade em que Fujimori havia sido reitor. Saiu dos estúdios convencido de que havia esmagado seu oponente. "Todas as pesquisas me deram por vencedor, e algumas com 15 ou 20 pontos de vantagem", escreveu.
Ao perder, Vargas Llosa deu adeus ao mundo político e não escondeu o amargor com o processo eleitoral, no qual "o funcionamento da democracia passava a ser uma espécie de paródia na qual os mais cínicos e espertos sempre levavam a melhor". Mas no próprio capítulo final de sua obra ele demonstrou que a fonte da sua derrota não estava no pântano religioso em que havia se transformado a campanha do segundo turno: ele relatou a visita que fez a uma sala de pesquisa qualitativa, atrás de um espelho que o permitia assistir a tudo sem ser visto ou ouvido. Percebeu que nenhum ataque colaria em Fujimori vindo de alguém que encarava a mais perfeita definição de elite. "Quando lhes perguntaram porque não votavam em mim, ficaram desconcertados por terem que dar uma explicação sobre algo em que jamais haviam pensado. (..) a resposta que melhor pareceu sintetizar o sentimento de todos foi: 'esse é o dos ricos, não é?'"
Uma das razões pelas quais o jogo da sucessão de 2010 ainda não está jogado é que uma certa dúvida paira sobre qual efeito terá no Brasil a cristalização de um dos candidatos como representante da "elite". No Peru em 1990, este foi o lugar destinado a Vargas Llosa. No Brasil, o Plano Real tirou Fernando Henrique Cardoso desta posição em 1994 e Luiz Inácio Lula da Silva colocou Geraldo Alckmin dentro do cercado em 2006. Neste momento, há uma tentativa em curso da campanha de Dilma Rousseff em reeditar a luta de ricos e pobres, contraposta às promessas de aumentos para o salário mínimo e Bolsa Família feitas por Serra. Talvez seja aí, e não em Erenices, Paulos Pretos e histerias religiosas que se trave a batalha de outubro.
*César Felício é correspondente do Valor Econômico em Belo Horizonte
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