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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Homens falam demais

Antônio Risério*
Depois de alguns meses morando em Brasília, flanando sem compromisso às margens plácidas do Paranoá, em pleno ócio da campanha presidencial - quando, por absoluta falta do que fazer, passava horas conversando com João Santana sobre vinhos, poesia provençal, hábitos sexuais do Oriente ou música barroca, entre outros temas igualmente fascinantes -, eis que venho voltando aos poucos à realidade, à dura vida do verão baiano e, claro, à nossa querida Terra Magazine. Voltando aos poucos, aviso. Voltando aos dropes. Vivo "fazendo antropologia". Expressão que, aliás, até uso como uma espécie de gíria particular, levando meus amigos a sorrir. Um deles me encontra, por exemplo, tomando um chope no Pereira, no Porto da Barra, ao pôr do sol - ou sentado no banco de uma pracinha em Arembepe, apreciando o ir e vir das pessoas queimadas de sol - e me pergunta "o que tô fazendo" ali. A resposta é invariável: "fazendo antropologia". E é a mais pura verdade. Não faço outra coisa na vida.
Pois bem: "fazendo antropologia" recentemente, em algumas andanças pela capital baiana e seu litoral norte, cheguei a uma conclusão - melhor, a uma constatação - que não deixou de me surpreender (e a uma das fantasias machistas que ainda carrego comigo): os homens falam muito mais que as mulheres. Notei isso muito bem - e para minha surpresa, repito - em duas festas que fui (um aniversário, um caruru) e observando o comportamento de meus convivas involuntários, em espaços de bar. É impressionante. O tempo discursivo, nesses lugares onde estive, era quase inteiramente ocupado por vozes masculinas. Pelo homens. As mulheres falavam bem menos. E, no entanto, temos a velha piada. "Você sabe qual é o mês em que as mulheres falam menos? É fevereiro - porque só tem 28 dias". Mas observem dois casais numa mesa de bar. Regra quase geral, são eles - e não elas - que controlam o tempo e o fluxo do discurso. Que falam mais. Que tagarelam praticamente sem parar. E quando as mulheres se ach am apenas entre elas, não falam mais do que os homens entre si. Quando muito, o jogo termina empatado.
Falar sobre mulheres é sempre complicado. Mas a gente fala. Me lembro de um ensaio que publiquei há tempos, numa coletânea chamada "O Desejo Masculino", com quase todos os textos assinados por psicanalistas. Como sabia disso, aproveitei para falar umas duas ou três coisas que penso delas. Mas o que deu alguma confusão foi uma passagem sobre mulheres, onde eu falava da teoria de Sarah Hrdy, uma sociobióloga norte-americana, que trocou a antropologia cultural por estudos de primatas, inclusive viajando para a África a fim de examinar clitóris de fêmeas de orangotango. Entre outras coisas, Sarah diz que o orgasmo femino está em vias de extinção, pelo fato de não ser mais biologicamente adaptativo, vale dizer, necessário à sobrevivência da espécie. Por isso mesmo, o clitóris das fêmeas humanas não havia se desenvolvido como o das fêmeas de chimpanzés e orangotangos, que são enormes, para que elas tenham prazer em receber muitos machos, em trepadas monumentais, e gerem filhos. Na espécie humana, a conversa é outra. O orgasmo femino e a geração de filhos se dissociaram. O orgasmo não é mais "adaptativo". Logo, de uma perspectiva darwiniana, tende a desaparecer. A pequenez singela do clitóris das fêmeas humanas é um indício disso.
Bem, nunca me vi envolvido em tantas discussões com minhas amigas. Eu não estava defendendo nenhuma ideologia, não estava afirmando nada, etc. Apenas, expusera um ponto de vista existente na área dos estudos biológicos. Mas não adiantava argumentar. Me vi sob fogo incessante durante uns dias. E não só as mulheres estavam interessadas na discussão. A citação de Sarah Hrdy me rendeu, entre outras coisas, uma longa conversa telefônica (ele, no Rio; eu, em Brasília) com meu querido Caetano Veloso. Caetano ficou ligadíssimo naquela história. Me fez as mais diversas perguntas. Conversamos bastante, viajando pelos meandros do tema. E Caetano mistura observações profundas com tiradas bem-humoradas. Lá pelas tantas, me disse: "se o orgasmo feminino tá indo embora, eu quero ir junto com ele". Na verdade, Caetano ficou tão interessado que acabou descolando outros textos de Sarah. E até me deu um livro dela, que eu não tinha, de presente: "The Woman that Never Evolved". Com a dedicatória : "Riso, aí está. Contanto que nós outros continuemos a evoluir... Beijos".
Mas vejam: eu já estou falando demais...
No "Vocabulário Tupi-Guarani Português", o velho Silveira Bueno oferece uma explicação curiosa para a palavra "cunhã", com que os tupinambás designavam mulheres. O tupi, como se sabe, é uma língua aglutinante, como o alemão. "Cunhã", segundo Bueno, viria de "cu" ("língua") e "nhã" ("que corre"). Logo, mulher = "a língua ligeira, rápida, linguaruda". Não acredito que a explicação seja correta. Mas aí está o mito, encontrável nas mais diversas culturas e comunidades: as mulheres falam demais - e, no desdobramento desse falar demais, a mania de contar tudo, a incapacidade de guardar segredo. É o que dizem os índios brasileiros, os negros da África, os nórdicos. Esta incapacidade feminina para o segredo é o que explica a constituição de sociedades secretas masculinas - como a dos abakuás de Cuba, por exemplo, que tanto fascinaram García Lorca -, em torno de certos mistérios e fundamentos da existência e do cosmos.
Mas, assim como estou chegando à conclusão de que os homens tagarelam mais que as mulheres, não penso que a incapacidade para o segredo seja monopólio feminino. Guardar segredo é muito difícil para todos nós. É quase irresistível contar o que só nós sabemos. Na verdade, a capacidade de silenciar uma coisa depende de muitos e complexos fatores. Da opção por isso, do tipo de compromisso que se tem diante de determinado assunto ou ação, da confiança que se tem na pessoa que pediu a você que guardasse o segredo, etc. É muito complexo. Eu mesmo confesso, desde logo, que guardo segredo sobre raríssimas coisas e de raríssimas pessoas. Entre elas, o supracitado João Santana. Mas é pela minha absoluta confiança nele que não digo nem meia sílaba do que ele me diz que é para não dizer. Ou seja: o assunto é mais complexo - guardar segredo implica muitas coisas. Não diz respeito a gênero ou sexo.
Além de não falar mais que os homens, as mulheres têm me parecido, nessas minhas últimas andanças "fazendo antropologia", bem mais concisas e objetivas. Muitos homens parecem estar mais preocupados, acima de tudo, em demonstrar uma certa superioridade ou competência verbal. São muito prolixos. Loquazes. Enfim, parecem mais interessados no modo de dizer do que na substância do que estão dizendo. Posso estar completamente enganado. Mas é o que tenho visto. Ou, ao menos, esta é a impressão que tenho sobre o que venho ouvindo. Mas, em todo caso, vou continuar fazendo antropologia. É o que me resta. E, sobretudo, é o que mais me encanta, fascina e diverte.
Conversei sobre essas coisas, recentemente, com algumas amigas. Eles escutaram atentas o que eu dizia. Algo surpresas. Em silêncio. E eu ali: falando, falando, falando...
*Escritor, antropólogo e poeta
Artigo publicado originalmente em www.terramagazine.com

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