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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ladrões de Cinema

Henrique Wagner*
Roubar uma equipe americana de cinema, que cobria o carnaval carioca, jamais teria se tornado uma fábula não fosse a mão de um fabulista inveterado quanto Fernando Coni Campos, realizador de "O Mágico e o Delegado" (1983), dentre outros poucos longas e muitos curtas. Em "Ladrões de Cinema", Fernando Campos faz o seu particularíssimo Cinema Novo, arestas aparadas, história bem contada, linear, boa direção de atores e certa fleuma necessária à boa condução de uma câmera. Tudo o mais se encontra no reino da fábula, na beleza das coisas tocadas pelo mágico, sempre perseguido, de perto, pelo delegado.
O filme começa com cenas aleatórias do carnaval carioca. Uma equipe americana surge regis-trando nosso carnaval, o carnaval das mulatas, do samba, da orgia. Uma das alas tem uma faixa com a frase “O sertão vai virar praia” em seu tecido. Antes de dez minutos de cinema americano, eis que começa o cinema brasileiro: vestidos de índio, os ladrões de cinema roubam todo o equipamento dos “gringos” e o levam para o Morro do Pavãozinho, favela carioca, numa espécie de “erro de português” oswaldiano.
Bebendo a feita, mexem e remexem naqueles apetrechos, para eles ainda desconhecidos. Milton Gonçalves, Antonio Pitanga, Wilson Grey, Luthero Luiz e outros menos conhecidos da “polícia”. A ideia parecia clara: vender o equipamento. De repente, dois dos integrantes do grupo, Luquinha (Gonçalves) e Fuleiro (Pitanga), decidem que podem fazer cinema. O susto do futuro traidor foi grande: mas como fazer cinema, se jamais o fizemos?
É então que entra o Cinema Novo de Glauber Rocha, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Acontece que, em Fernando Campos, esse formato, tão simples, é uma alegoria, não uma ciência sem fundamento. Torna-se evidente, durante todo o filme, que o realismo mágico, obrigatório quando se pensa em América Latina, conduz o roteiro até uma idealização que pode ser entendida, e daí apreendida, para só depois criar a ponte, a mais segura possível, entre ideação e realização. Afinal, os ladrões de cinema eram ladrões profissionais. Roubaram com bastante eficiência e profissionalismo.
Os ladrões pensam em filmar seu povo, seu lugar, a favela, o Morro do Pavãozinho. E o que filmar, exatamente? Ambiciosos, dispensam a facilidade ou mesmo inutilidade de filmar um trem passando, tão somente. Querem história, enredo, roteiro. Então decidem recontar a história de Tiradentes, homem do povo, traído pela aristocracia das minas, enquanto buscava instituir a liberdade, a república, os direitos iguais, que iam de encontro aos princípios da monarquia. Todo o filme, agora, passa a ser a montagem da Inconfidência Mineira no Morro do Pavãozinho.
A câmera de Fernando Campos mantém-se distante, quase sempre, tornando-se eficiente em seu objetivo de mostrar a coletividade, o grupo reunido, trabalhando. Desse modo, o transporte que acontece entre as cenas de estúdio e as locações acaba por se tornar menos impactante, mais harmonioso, compondo o filme de maneira compacta. Essa discrição fílmica faz de Fernando Campos e de sua obra uma teoria do Cinema Novo, ainda que, em prática, um manifesto composto de palavra e imagem – as grandes paixões do diretor, que era poeta e artista plástico – em ação, resultante de todo um engenho, necessário à criação do palco para o improviso. Afinal, onde se improvisar? Onde fazer o novo? Coni Campos surge absolutamente preparado para realizar seus experimentos, todos muito bem equilibrados entre o lúdico e o responsável, entre a loucura e a lucidez, o dionisíaco e o apolíneo, a fim de mostrar um produto apto a disputar no grande mercado, mas sem fazer as grandes concessões que um produto americano, por exemplo, costuma fazer.
Ladrões de cinema é discurso e fábula, sempre. Ora, como poderiam homens insipientes realizarem um filme? Coni Campos fala por parábolas, para que, tal como o fizera o profeta, sua mensagem seja perene, sempre atual. Tudo é representação. Em um país como o Brasil, fazer cinema é ser marginal. De um lado Jean-Claude Bernardet vivendo um dos americanos roubados; de outro lado, Grande Othelo e seu roteiro O homem do surdo. A dicotomia representada por esses dois personagens revela com precisão as camadas antagônicas da sociedade brasileira.
Tomando emprestado o lirismo de Vittorio De Sica – e o realismo, em estado conotativo –, Coni Campos, que assina o argumento e o roteiro, compõe um quadro a um só tempo expressionista e impressionista, em que o discurso é demonstrado, imediatamente, pelo sonho. Marginais fazem um filme sobre a revolução mineira. Cinema, de repente, passa a ser feito por moradores de uma favela carioca. A prole, numa atuação menos histérica que a dos tripulantes do Potemkim, toma o poder (a câmera) e mostra que sabe fazer melhor do que se tem feito até agora. Sempre foi tênue, a linha divisória entre o artista e o marginal.
Mas há um traidor. Joaquim Silvério dos Reis, ele mesmo. O homem histórico, o homem que, desde o início, não acreditava no sonho, preferia vender todo o equipamento roubado. Silvério (Luthero Luiz) entrega o bando à polícia, mas com o filme já pronto, ou quase pronto. A equipe americana assiste ao copião e decide editar e distribuir o filme, sob o título Sweet thieves. O bando é preso, mas liberado para assistir à pré-estreia de seu filme, no Rio de Janeiro, aprovado até mesmo pelos “rigorosos e exigentes” produtores do cinema americano. Os ladrões de cine-ma voltam à cadeia, no entanto, terminado o filme.
Mas que filme? E que cadeia? Qual dos dois filmes termina? Onde está a cadeia senão do lado de fora das celas? Segundo Silvério, “marginal não filma”. Difícil não pensar no mitologema de Prometeu, roubando o fogo sagrado. Aqui, trata-se do cinema contra o carnaval – aquele carnaval que leva à alienação. É, repito, o índio oswaldiano despindo o colonizador. Por um Brasil mais político, numa sedição iniciada de baixo, por uma favela carioca. Por isso é Mano Décio da Viola, músico popular, quem faz a trilha sonora do filme, lançado em 1977, com canções sobre poemas de Alvarenga Peixoto, Castro Alves e Tomaz Antonio Gonzaga. Luthero Luiz, que faz um dos integrantes do bando, ganhou o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante, no X Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Fernando Coni Campos, cineasta solitário brasileiro, realizou um filme cheio de técnica e sonho para mostrar que é possível fazer cinema com pouco recurso, mas não sem talento e/ou trabalho. Marginal, em "Ladrões de Cinema" não é exatamente o delinquente, mas o homem à margem da sociedade, ou seja, o artista, de um modo geral. Daí ser importante atentar para a representação ou alegoria do neófito: aquele que, de novo, tem a vontade, sempre fresca, viva, e que não pode ser presa. Nem roubada.
* Prêmio de melhor crítica cinematográfica da Secretaria de Cultura da Bahia

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