Contardo Calligaris*
"Li no "Times" de Londres desse domingo que Dominique Strauss-Kahn (DSK, na imprensa francesa), no dia de sua prisão, sentou-se numa poltrona de primeira classe do Air France 23 para Paris e fez um comentário sobre a aeromoça da cabine: "Bonita bunda". Isso, num tom suficientemente alto para que outros passageiros (e, presumivelmente, a própria aeromoça) ouvissem.
A seguir, o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional e candidato socialista à Presidência da França foi retirado de seu assento e preso, acusado do estupro de uma mulher que entrara na sua suíte de hotel para fazer a limpeza.
Desde então, outras mulheres vieram a público para revelar que elas foram, no passado, vítimas de assédio sexual ou estupro por Strauss-Kahn. Todas declaram que calaram-se, convencidas de que a palavra delas pesaria menos do que a do poderoso DSK.
A quantidade e qualidade das acusações excluem a hipótese de armação da extrema direita francesa, que se beneficiaria com a saída de cena do candidato socialista.
Pois bem, DSK não foi julgado ainda. Mas apareceram numerosos comentários de leitores e colunistas da imprensa internacional, dos quais discordo -e talvez seja interessante explicar por quê.
Imaginemos que as acusações contra Dominique Strauss-Kahn se confirmem. Muitos perguntam: como é possível que um homem prestes a realizar seu sonho político não saiba se controlar e se deixe levar por compulsões "animalescas"?
Para Minette Marrin (do "Times"), "quando ele é possuído pelo espírito do "chaud lapin" (coelho excitado), DSK perde qualquer interesse pelos sentimentos de uma mulher. Ele os ignora e se impõe à mulher, agarrando-a e amassando-a como um dono (...) que não vê nada de errado na ideia de que a mulher não goste; talvez ele nem seja capaz de entender se ela gosta ou não".
Ora, o padrão presumido de DSK não é "animalesco" e é totalmente consistente com seu projeto de vida. Ou seja, o que acontece não é que Strauss-Kahn não controlaria um impulso secreto, que não teria nada a ver com sua vida pública. Ele não pula em qualquer mulher, aconteça o que acontecer. Ao contrário, aparentemente, sua fantasia dominante é a expressão coerente de uma ambição política, de domínio.
Ou você acha que é por acaso que ele teria escolhido mulheres que ele conseguiu manter no silêncio pela simples força de seu status?
A fantasia em jogo no caso (presumido) de Strauss-Kahn é mais complexa (e mais grave) do que o "simples" estupro; ela diz: "Eu te agarro, te uso, E VOCÊ NÃO VAI OUSAR NEM PIAR SOBRE ISSO".
Diferente do que diz Marrin, o Strauss-Kahn das denúncias se importa muito com o que pensam as mulheres, pois ele preza (acima de tudo, talvez) a frustração e a impotência exasperada de suas vítimas, incapazes de denunciá-lo.
Ou seja, à vista das acusações, DSK goza de uma fantasia de poder (mais do que propriamente sexual): seu prazer está em criar uma situação em que a vítima será e se sentirá derrotada, no silêncio. O caso relatado pelos passageiros da Air France é emblemático: a aeromoça não falaria, exatamente como as outras.
De repente, em Nova York, uma camareira imigrante africana teve a coragem de falar.
A ideia de que o senhor feudal teria o direito de deflorar as noivas de suas terras (dito "direito da primeira noite") é provavelmente um mito -ao menos, enquanto instituição jurídica.
Mas o tal "droit de cuissage" (direito de encoxar), embora não instituído, devia ser uma fantasia exercida sem dificuldade e sem risco: quem ousaria se queixar de ser agarrada pelo senhor das terras, e qual noivo ousaria pedir satisfação?
A família de meu pai é originária de uma cidade perto de Ivrea, no Piemonte, onde se celebra o carnaval com a Batalha das Laranjas.
É assim: uma jovem da cidade é escolhida "filha do dono do moinho" e simboliza uma mulher do povo, que cortou a cabeça de um duque que exigiu passar com ela a famosa primeira noite.
Milhares de cidadãos, vestidos a caráter, do domingo à terça de Carnaval, metralham com laranjas os guardas do duque que desfilam pela cidade de charrete. Alguns dizem que é um despropósito: são toneladas de laranjas desperdiçadas, a cada ano. Mas eu sempre achei que valia a pena".
*Psicanalista e escritor
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