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segunda-feira, 18 de março de 2013

Uma clássica galerista de vanguarda


Jacilio Saraiva | Para o Valor, de São Paulo

Silvia Costanti/Valor / Silvia Costanti/Valor
Com a Galeria Fortes Vilaça, Márcia Fortes representa alguns dos principais artistas contemporâneos brasileiros
Beatriz Milhazes ou Adriana Varejão? A primeira curiosidade que surge no encontro com a galerista Márcia Fortes é descobrir que obras ela tem em casa. Hábil com as palavras, ela adia a resposta durante as cinco horas de entrevista realizada entre o Galpão e a Galeria Fortes Vilaça mais uma corrida de táxi, da Barra Funda à Vila Madalena, em São Paulo. Não se deve esquecer que essa carioca de 45 anos, leitora voraz e dona de uma biblioteca de 50 metros lineares de volumes, é uma ex-jornalista. Domina técnicas de narrativa e pode encantar qualquer um com a própria história. E talvez nem fale do mercado de arte contemporânea, nem como se transformou em uma das mais importantes marchands do país, dona do passe de artistas como Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e outros 35 nomes estrelados do ramo.
"Eu poderia ter sido uma filha mimada, mas resolvi seguir outro caminho", diz ela, no escritório do Galpão Fortes Vilaça, entre uma tela gigante de Nuno Ramos e um quadro da polonesa Agnieszka Kurant, ainda envolto em papel-bolha, que mostra um mapa-múndi pontilhado de ilhas imaginárias. A carioca Márcia é filha do ex-deputado federal do PSDB Márcio Fortes e neta de João Fortes (1919-2002), fundador da companhia de mesmo nome que no fim da década de 1970 estava entre as três maiores do mercado brasileiro de construção imobiliária.
Aos 15 anos, antecipando a carreira que assumiria apenas dois anos depois, começou a trabalhar no jornalzinho da empresa do avô. Aprovada no curso de jornalismo da PUC-RJ, bateu à porta do "Jornal do Brasil" no primeiro semestre da faculdade. Queria cobrir cultura, mas foi despachada para a editoria de cidades, para reportar crimes e manifestações de rua. "Minha família e todos na redação achavam que eu ia desistir." Ganhou dois prêmios Esso de Jornalismo, por equipe, sobre uma greve, seguida de quebra-quebra, nas ruas do centro do Rio, e por um relato do movimento sindical em Volta Redonda (RJ).
No então novo jornal "O Dia", Márcia começou a escrever mais sobre o que queria. "Fiz a primeira entrevista da carreira do Ed Motta." Mas foi um trabalho para a televisão, para a jornalista Belisa Ribeiro, que lhe garantiu fundos para comprar uma passagem, do próprio bolso, para Nova York.
Colocou uma câmera Nikon F2 na mala, matriculou-se em um curso de fotografia e acabou como assistente de estúdio do fotógrafo John Fellows. Trancou a faculdade no Rio e trabalhou durante seis meses como "bike messenger". Um dia, a família a chamou para a razão e exigiu um diploma da herdeira. "Foi quando a filha mimada falou mais alto e aceitou ajuda para voltar a estudar."
Em 11 anos fora do país, durante os anos 1990, Márcia formou-se em literatura inglesa e americana na New York University (NYU) e aprendeu a se virar como jornalista freelancer e tradutora. Quando deixava o apartamento do East Village para morar, por temporadas, em cidades como Londres ou Berlim, "sempre com algum namorado", sublocava o local para amigos, como a carioca Beatriz Milhazes. Não desconfiava de que um dia representaria o portfólio da amiga, considerada hoje um das assinaturas mais atraentes do mercado de arte, e que o ex-namorado que a levou para a Inglaterra, Jay Joplin, seria o dono da White Cube, galeria com unidades na Europa e Ásia que acaba de criar uma filial paulista.
No exterior, defendia o orçamento ganhando US$ 100 por matéria escrita, para revistas e jornais. Entrevistou o artista britânico Damien Hirst e o poeta beat Allen Ginsberg (1926 - 1997). A fotógrafa Annie Leibowitz ofereceu-lhe chá enquanto interrogava sua companheira de muitos anos, a ensaísta Susan Sontag (1933 - 2004), sobre o primeiro romance publicado. Traduziu para o inglês roteiros de filmes como "Madame Satã", de Karim Aïnouz, e "Orfeu", de Cacá Diegues.
"Não tenho muito tempo para sentir saudades dessa época. Gosto de estar 100% onde estou agora", diz. Com a porta do apartamento nova-iorquino sempre aberta, Márcia conheceu mais artistas e galeristas. "Encontrei Olafur Eliasson pela primeira vez quando fiz um release [texto para divulgação na imprensa] para ele, em 1993." Em abril, o dinamarquês conhecido por esculturas e instalações em larga escala, abre mostra no Galpão Fortes Vilaça.
"Só consigo trabalhar com o que gosto e ninguém é Picasso todos os dias. Nem Picasso era", afirma a galerista Márcia Fortes
A vida de Márcia estava prestes a mudar de enredo e locação depois de uma rodada de pizza na avenida Angélica, em São Paulo, durante uma de suas visitas ao Brasil. Foi apresentada ao colecionador Marcantônio Vilaça (1962-2000), que abriu a Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, em 1992. Quem armou o encontro foi o então namorado e primo de Márcia, o artista plástico Carlos Bevilacqua, que também tem exposição programada na Fortes Vilaça, no mês que vem. "Como dá para ver, é o coração que me leva para muitos lugares", diz a empresária, saindo do galpão da Barra Funda, de táxi, em direção à Vila Madalena.
Vilaça convenceu Márcia a virar curadora e, de longe, organizar coletivas internacionais na galeria paulista. Quando morreu, em 2000, a sócia da Camargo Vilaça, Karla Camargo (hoje Meneguel), se viu sozinha para montar duas mostras já planejadas. Convocou Márcia em Nova York para ajudá-la e, logo depois, acenou com uma proposta de sociedade no negócio. "Ela me deu uma semana para pensar. Para mudar de vida e de cidade. Eu quis matá-la", brinca.
Um ano depois, Karla resolveu fechar a galeria. Márcia, já de mala e cuia em São Paulo, quis "matá-la" pela segunda vez. "O sentido de responsabilidade com os artistas fez com que eu abrisse o meu espaço." Chamou a então estagiária da Camargo Vilaça e ex-cunhada de Marcantônio, Alessandra Ragazzo d'Aloia, para ser sua sócia.
Em agosto de 2001, fundaram a Fortes Vilaça, no mesmo local do antigo espaço, na esquina das ruas Fradique Coutinho e Purpurina. Sete anos depois, abriram o Galpão Fortes Vilaça, com 1,5 mil m2 de área, usado para grandes exposições e guarda de acervo. No ano que vem, o local ganha uma biblioteca de artes plásticas, aberta ao público, com livros e coleções de revistas importadas, como a alemã "Parkett" e a inglesa "Frieze".
Hoje, dos 37 artistas representados pela Fortes Vilaça, somente 13 vieram da antiga galeria e pouco mais de dez são estrangeiros. Alguns moram fora do país, como Janaína Tschäpe, que vive nos EUA. Do táxi, Márcia liga para Janaína e pede obras para a próxima SP-Arte, evento anual que ocorre em São Paulo (neste ano entre 3 e 7/4) e reúne 120 galerias do Brasil e do mundo. Na edição passada, estima-se que o faturamento total da feira tenha ultrapassado R$ 245 milhões.
Com mais de 20 funcionários, a Fortes Vilaça é conhecida hoje por representar boa parte dos artistas nacionais, em produção, mais valiosos no Brasil e no exterior. Em 2009, a tela "O Mágico", de Beatriz Milhazes, atingiu US$ 1,4 milhão durante leilão da Sotheby's, em Nova York - foi comprada pelo empresário argentino Eduardo Costantini. A avaliação inicial era de US$ 250 mil.
Sérgio Araújo/Galeria Fortes Vilaça / Sérgio Araújo/Galeria Fortes Vilaça
'Pierrot e Colombina' (2009-2010), de Beatriz Milhazes, artista de sucesso comercial da Galeria Fortes Vilaça
Na Christie's, em Londres, durante pregão realizado em 2011, um trabalho de Adriana Varejão, "Parede com Incisões a la Fontana II", ouviu o martelo bater por 1,1 milhão de libras, recorde na época para uma peça de autor brasileiro vivo. Presente no evento naquele dia, o mexicano Eduardo Molina, especialista em arte e ex-consultor internacional da casa de leilões em Paris, lembra que ficou surpreso por dois motivos. "Além da obra conseguir acabar com o ridículo estereótipo de arte latino- americana, conseguiu um valor altíssimo", diz ao Valor.
"Mas nem eu nem as artistas ganhamos um centavo nessas vendas. As obras já pertenciam a outras pessoas", esclarece Márcia, ao entrar na galeria e cumprimentar Isay Weinfeld. O arquiteto do hotel Fasano visita o local com um grupo de estrangeiros. Todos querem saber sobre uma tela feita com colagens de capas de livros, da mineira Valeska Soares. Márcia fala sobre o quadro e a trajetória da artista em 30 segundos.
Neste ano, a galeria já vendeu outra obra de Valeska, por US$ 140 mil, a um colecionador inglês. Até agora, é a maior venda do ano. A escultura vendida, feita em mármore, emula um colchão de dormir. Como é de praxe, o autor fica com 50% do valor da negociação e seus representantes com a outra metade.
Além de nomes de sucesso comercial, como Beatriz Milhazes e Adriana Varejão, a galeria conseguiu reunir talentos de forte apelo institucional, como Ernesto Neto e Rivane Neuenschwander, e até nascidos da arte de rua, como osgemeos, nome da dupla de irmãos grafiteiros Gustavo e Otávio Pandolfo. Mas, apesar do inegável dom da palavra, Márcia não se envolve no corpo a corpo das vendas. Também prefere enterrar o mito da galerista de telenovela, que sorri nos vernissages com um copo na mão.
"Sou uma operária. Gosto de montar exposições e acompanhar o trabalho dos artistas", diz. Ela é famosa por recusar molduras encomendadas dias antes das coletivas e arrumar quadros tortos em paredes. Interfere na iluminação e no número de montadores contratados. A galeria e o galpão fazem, em média, de 13 a 17 eventos ao ano, segundo o diretor da Fortes Vilaça, Alexandre Gabriel.
"A galeria formou uma rede de artistas excepcional em pouco tempo e parece investir na relação com os artistas", analisa o curador Paulo Miyada, coordenador do núcleo de pesquisa do Instituto Tomie Ohtake. Quando vai ao Rio natal visitar os profissionais que representa, Márcia divide o dia em blocos de duas horas e reserva cada período para um ateliê, como os de Luiz Zerbini ou Barrão. "A venda é uma consequência do trabalho de representação. Representamos o material humano, não as obras." Alguns pedem sugestões sobre a produção. "Só consigo trabalhar com o que gosto e ninguém é Picasso todos os dias. Nem Picasso era."
Os novos "Picassos" estão aproveitando o vento a favor do mercado. Há cinco anos, a revista americana "Art+Auction", dirigida para colecionadores, incluiu as sócias da Fortes Vilaça entre as cem pessoas mais influentes no mundo das artes. Em 2004, 70% das vendas da galeria ocorriam entre clientes europeus, americanos e asiáticos. Hoje, essa parcela caiu para 30% e o restante ficou nas mãos de compradores brasileiros.
"O mercado externo está em crise e o nacional cresceu", afirma. Segundo levantamento feito pelas galerias, os negócios do ramo, no Brasil, cresceram 44% em 2010 e 2011. O ano de 2011 mostrou um recorde das exportações de arte, com uma movimentação de US$ 60 milhões.
Por causa dos "filhos pródigos" pendurados nas paredes, Márcia é constantemente bombardeada por propostas de novos criadores em busca de representação. Recebe mais de seis currículos ao mês. "A indicação feita por um outro artista é a forma mais adequada de encontrar novos nomes." Além dos criadores, ela cuida dos interesses de dez colecionadores no Brasil, Estados Unidos e Inglaterra. "Um dos investidores brasileiros costuma me dizer que arte é algo que se compra por prazer, com uma pequena chance de se valorizar."
Para o crítico Lorenzo Mammì, autor do livro "O que Resta - Arte e Crítica da Arte" (Companhia das Letras, 416 págs.), a Fortes Vilaça calcula bem o risco que pode correr no mercado, ao se equilibrar entre artistas vendáveis e novas apostas. "A Vilaça, como uma galeria clássica, é mais ousada e, como um espaço de vanguarda, continua clássica", afirma. "É importante que não fique fossilizada, só trabalhando com grandes nomes."
Quando a copeira Nair dos Santos, funcionária do local desde os tempos de Marcantônio Vilaça, entra na sala para oferecer um café, Márcia lembra que o amigo continuou sacudindo sua vida, mesmo depois que morreu. Com a missão de montar uma exposição-homenagem sobre a coleção do galerista nascido em Pernambuco, ela pegou um voo SP-Recife com o fotógrafo Eduardo Ortega, destacado para registrar as obras. Os dois não se conheciam e ela só o encontrou no aeroporto, na esteira das bagagens. Estão casados há 13 anos.
"Nunca sonhei em ter uma galeria, mas casar e ter filhos eram metas de vida", confessa. E quais são as obras preferidas que tem em casa? Ela liga um notebook e mostra uma série de fotos. Antônia, de 8 anos; Lívia, 6, e Vicente, 1, brincam juntos numa tarde de sol.

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