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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Era uma vez o Brasil

Carlos Eduardo Soares Gonçalves | Valor


Era uma vez um país que finalmente dava continuidade a certo conjunto de políticas macroeconômicas de qualidade e ensaiava os primeiros passos numa agenda mais profunda de incremento da produtividade dos setores privado e público. Esse país, terra da deleitável jabuticaba, 20 anos atrás: controlou a grande inflação com um sistema de taxas fixas de câmbio que tem lá seus problemas, mas é implacável caçador de inflações altas e resistentes; abriu-se para o comércio exterior numa velocidade estonteante (o que não é ideal, mas tenta fazer essas coisas aos poucos para ver se você consegue); privatizou suas ineficientes empresas públicas sugadoras de escassos recursos orçamentários. Começava a normalização do ambiente econômico.
Esse mesmo país, depois de uma crise internacional de amplas proporções nos fins dos anos 1990, que foi sofrida mas forçou mudanças necessárias e para melhor, sofisticou ainda mais seu arcabouço econômico: passou a permitir a livre flutuação da moeda e adotou rigor nas contas públicas e na condução da política monetária, respectivamente, criando a Lei de Responsabilidade Fiscal e copiando o bem-sucedido sistema de metas de inflação, que já havia sido implementado algures. Esse país, enfim, depois dos solavancos da virada do século, parecia pronto para a segunda etapa da agenda do desenvolvimento sustentado - uma agenda de natureza mais microeconômica e institucional. Mesmo com alterações na política. Mudou o comandante, saiu o sociólogo e entrou o companheiro, mas o companheiro sentado finalmente na cadeira mais alta, para surpresa de muitos e felicidade geral da nação, manteve o timão na direção correta. Um sabor de esquerda europeia no ar. Mas, passado o seu tempo, o companheiro tinha que dar a vaga para outra pessoa e aí, de repente, a criatura do próprio companheiro, democraticamente alçada ao posto de comandante-em-chefe, resolveu - como compreender isso? - jogar tudo por terra, dar fragorosos passos atrás, retroceder a décadas remotíssimas, nas quais o andar da carruagem se pautava pela lógica de uma desabrida marcha forçada - e fracassada. Nem o companheiro entendeu, creio eu, mas já era tarde. Era uma vez o Brasil.
Em 2009 houve uma imponente crise vinda lá de fora, dos países centrais, e houve, conseguintemente, uma reação dos líderes nacionais, ávidos por acionar as alavancas à disposição, de modo a conter os efeitos nocivos da irresponsabilidade dos ricos estrangeiros. Era preciso transformar uma tsunami vinda do Norte em marolinha dos calmos mares do Sul. E reduzir juros, superávit primário e aumentar o crédito público, ali, naquele momento, deu certo, até porque o terreno estava melhor preparado para isso, abundante em reservas internacionais, aplainado de dívidas grandes e de tenebrosa indexação. Foi um sucesso, efetivamente. Palmas!
Mas, ó humanos incorrigíveis, o sucesso acendeu a fagulha da húbris, e os deuses começaram a ficar insatisfeitos. Aconselhamentos foram ventilados por gente de bem: era preciso refrear aquele impulso tremendo nas políticas fiscal, monetária e para-fiscal. Aquilo geraria inflação e má alocação de capital entre os setores da economia. Esses apelos ao razoável, porém, encontraram ouvidos moucos, de mercador, de mercadores de eleições mais precisamente. Dionísio, em algum lugar aqui na Terra, mastigava jabuticabas e incitava a farra a continuar: o país empanturrava-se em gastos altos e juros baixos e crédito farto e subsidiado. A turma no poder queria - como é natural, reconheçamos sem hipocrisias - seguir no poder, e para isso era preciso meter o pé na tábua. Mas, claro, quem acelera demais uma hora tem que frear. Fosse só isso...
O problema é que a coisa não ficou só no expansionismo eleitoral. Fosse assim, a natural e típica reversão à sensatez no pós-pleito conteria os danos sobre a economia, a afobação em incentivar a demanda refluiria, as coisas voltariam gradativamente aos eixos. E no primeiro semestre de 2011 parecia efetivamente que essa era a rota. Mas não, tratava-se de ajuste passageiro e a contragosto, pois a nova líder, uma senhora de português faltoso, tinha efetivamente outra visão de mundo, uma visão trópico-jabuticabal sobre o funcionamento da economia, um conjunto de ideias compartilhadas por um número ínfimo de arautos num mundo de não sei quantos milhões de economistas. Então, desde o segundo semestre de 2011, o exotismo na política econômica floresceu com vigor inaudito, como se, a exemplo da jabuticaba, houvesse uma política econômica válida apenas para o "do Oiapoque ao Chuí" presente, ainda que tenha experimentado comprovado fracasso alhures e aqui mesmo em outros tempos.
Consistia nisso, tentando resumir: reduzir forçosamente a taxa de juros para ver no que daria, uma promessa de campanha (que esquecia, claro, da feliz existência de uma relação entre juros na canetada baixos e inflação elevada); aumentar gastos e cortar impostos, atitudes que, em conjunto, desafiam as leis mais elementares da aritmética fiscal (por favor, não tentem reproduzir esse tipo de experimento na sua casa, pode ser muito perigoso); intervir pesadamente na taxa de câmbio sem critério bem definido, sendo uma hora para incentivar a indústria nacional (que, curiosamente, não se sentiu nada incentivada, a julgar pelos dados), outra hora para controlar a inflação galopante; fechar a economia ao comércio internacional e solapar sua eficiência com medidas como a tal "necessidade de conteúdo nacional", que premia a incompetência e onera os competentes; erigir um faraônico sistema de subsídios para os mais ricos - sim, você leu corretamente, para os mais ricos - via crédito barateado para um grupo seleto de empresários carinhosamente apelidados pelos críticos como amigos do rei (da rainha?). E cosi via...
Deu no quê essa tal de nova matriz?
Deu nisso: inflação superior a 6%, ou seja, bem acima da meta estipulada, que é 4,5% para os desavisados; déficits externos grandes, da ordem de há muito não vistos, de 4% do PIB; queda da produtividade e dos investimentos a taxas apavorantes; rebaixamento do crescimento potencial, de cerca de 3,5% para a casa dos magérrimos 1,5%.
Aí vocês podem dizer (e estão desculpados de antemão pela inocência): mas depois de tanta miséria de resultados, eles reconheceram, ainda que a voz baixinha, os erros crassos? Desculpe informar que não, que não reconheceram. E aguente firme, prezado leitor, tenha nervos de aço, pois aviso aos navegantes que há uma chance de tudo isso se repetir, como naquele filme da marmota, por todos os dias dos próximos quatro anos.
7 a 1 diz alguma coisa pra você? A piada de mau gosto entre os economistas é que, na hipótese de continuidade desse conjunto de políticas econômicas é bom se acostumar com a ideia de inflação na casa dos 7% e crescimento na casa do 1%.
O governo, claro, e seus defensores, dizem que não é nada disso. Que a desaceleração tem que ver com uma economia mundial em dificuldades. Mas como pode ser essa a explicação se outras economias emergentes estão indo muito bem, obrigado? Ok, demos um injustificável benefício da dúvida, aceitemos que foi a desaceleração mundial que nos legou esse crescimento médio de menos de 2%. Sendo essa a história, porém, por que, enquanto a inflação lá fora está mais para perto de 2%, a nossa situa-se acima de 6%? Não estamos sofrendo de um mal de desaceleração generalizado? Ué, mas isso implica inflação perto de zero...contudo a nossa é de mais de 6%. Ué mesmo.
Não foi o cenário internacional, meus prezados, foram os erros na política econômica. Era uma vez um país cujo futuro, escorregadio, teimava em não chegar. Era uma vez o Brasil.
Carlos Eduardo Soares Gonçalves, professor titular de economia da FEA-USP e autor de "Economia Sem Truques" e "Sob a Lupa do Economista" (Campus), escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: cesg73@usp.br

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