Reflexões e artigos sobre o dia a dia, livros, filmes, política, eventos e os principais acontecimentos

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A excelência dos brancos (e tintos) do Friuli


Jorge Lucki*
O genial Enzo Pontoni, da vinícola Miani, produtor do Calvari: extremamente generoso e simplório, é um “vero contadino” (camponês) e só se sente confortável trabalhando nas vinhas
Com exceção do staff de importadoras, dificilmente encontro alguém ligado ao vinho - jornalistas, blogueiros, sommeliers e afins - nas feiras do setor que acontecem mundo afora, em especial as europeias, caso da Prowein, Vinitaly e Vinexpo, principalmente. Por mais que sejam interessantes, é preciso disposição, disciplina e força de vontade (além de certo preparo físico) para enfrentar toda aquela agitação e burburinho, com condições em geral pouco propícias para degustar e conversar direito com os produtores.

Tem suas compensações. Sempre achei que valia a pena e procurei transmitir um pouco do que se passava dentro delas desde que comecei esta coluna, junto com a primeira edição do Valor, que comemora agora 15 anos. Não por acaso, meu artigo de número dois, publicado na segunda semana de maio de 2000, era sobre a Vinitaly daquele ano, que tinha três mil expositores ocupando 51 mil metros de área - hoje são 4,1 mil e 90 mil metros -, e dizia: "A maratona, misto de prazer e muito trabalho, oferece um cenário dos vinhos italianos de hoje: a evolução e as novidades de cada região, as particularidades das safras e as tendências. Há 10 anos, o "Gambero Rosso", guia de vinhos mais conceituado da Itália, dedicava quase 80% de sua maior pontuação (os "tre bicchieri"), para vinhos da Toscana, Piemonte e vinhos brancos do Friuli. Embora estas continuem em destaque com ótimos vinhos, não é mais possível ignorar as demais regiões".

Fiel a tal conceito, fui tentando alargar minha visão sobre os vinhos italianos menos conhecidos, indo atrás de pequenos produtores, nem sempre presentes à feira. Muitas dicas vieram das cartas de vinho e dos sommeliers de restaurantes dos arredores, em particular, Frosio, perto de Bergamo; La Peca, 40 quilômetros a leste de Verona; e Le Calandre, em Rubano, nas cercanias de Padova, quando nem tinham as estrelas e a pompa que ostentam atualmente (estes dois últimos).

O roteiro pós-Vinitaly deste ano tem tudo a ver com o que eles me passaram ao longo do tempo. Começou no Trentino com a Foradori, tema de coluna anterior, e teve sequência com um giro mais aprofundado de oito dias pelo Friuli, contando com a inestimável ajuda e desprendimento de Stefano Zannier, friulano de origem, que veio ao Brasil em meados da década de 1990 por conta da Expand e hoje presta serviços à Decanter, no Rio de Janeiro, e da carioca Ada Freire, radicada há 25 anos por lá.

Uma exceção num país até então famoso pelos seus tintos, a região do Friuli (Friuli Venezia Giulia é o nome completo) sempre se destacou pela excelência de seus vinhos brancos, produzidos, sobretudo, na faixa mais a leste, próxima à divisa com a Eslovênia. É onde estão as Denominações de Origem Colli Orientali del Friuli, Collio Goriziano - referência à cidade de Gorizia - ou somente Collio ("collio" significa colina, encosta), que são mais montanhosas e têm um solo composto por marna estratificada e arenito (uma espécie de rocha calcificada em camadas), ali conhecido por "Ponca", conferindo especial elegância e mineralidade aos vinhos.

Em ambas se destacam as uvas friulano, também conhecida como sauvignonasse, que propicia (particularmente lá) brancos aromáticos e distintos - antes da mudança imposta pela União Europeia, em 2006, era denominada tocai friulano -, malvasia istriana e a ribolla gialla, além das internacionais chardonnay e sauvignon, que, embora tenham se adaptado ao local, mantendo certa personalidade, carecem de maior apelo comercial em função da concorrência com vinhos tradicionais do mercado.

Nem foi por esse motivo que Josko Gravner resolveu arrancar recentemente os preciosos vinhedos que tinha de ambas e que entravam na composição de seu famoso Breg (a última safra será a de 2012). Tudo em nome da tradição, ele quis se concentrar na ribolla gialla, casta ancestral de sua região natal e que admirava pelas características e constituição. Quando comentei que era um pecado descontinuar um vinho tão bom, Josko respondeu, fixando-se na valorização de suas raízes: "É mais forte do que eu. É uma satisfação de, nestes anos de vida que me restam, fazer o que meu coração indica".


Menos dificuldade têm os tintos à base de merlot e pinot noir, mas que, para mim, perdem longe em interesse para as nativas schioppettino, pignolo (bem mais tânica e que necessita de longo envelhecimento) e, particularmente, para a refosco (dal pedúnculo rosso), vinhos que tiveram grande evolução qualitativa nas duas últimas décadas.

Se minha ligação com a schioppettino é relativamente recente - a boa acidez e os toques de especiarias criam incrível aptidão para se harmonizar com comida, como ficou provado no Lorenzo Bistrô, no Rio de Janeiro, há uns três anos, combinando à perfeição com o "penne ao ragu de contadinella", prato proposto pela saudosa e talentosa Nick com o apoio do Janjão, os donos -, com a refosco vem do tempo em que tive a oportunidade de provar o Calvari, do genial Enzo Pontoni, da vinícola Miani, no anteriormente citado restaurante La Peca. Voltei à casa várias vezes só para tomá-lo.

Um dos pontos altos deste roteiro pelo Friuli foi conhecê-lo pessoalmente. Não foi fácil, e não é por estrelismo. Ao contrário, Enzo é extremamente generoso e simplório, um "vero contadino" (camponês), e só se sente confortável em cima de seu trator, trabalhando nas vinhas. No dia combinado, ele havia começado às 5h30, só parando para o nosso encontro, treze horas depois. Num belo final de tarde, fomos primeiro conhecer os vinhedos, sua razão de ser. De volta à adega, depois de provar seus também excepcionais friulano e sauvignon da safra 2013, já engarrafados, partimos para degustar, direto dos barris, vários merlots e refoscos, que ele vinifica e comercializa por parcela individualmente, até chegar no Calvari 2013. É, sem medo de errar, um dos grandes vinhos tintos italianos. Enzo, desculpando-se, não tinha nenhuma garrafa para vender. Mas levei um rótulo autografado, que está colado no meu moleskine com as anotações.

O rio Isonzo atravessa a região que leva seu nome, colaborando para marcar seu solo e mudando a característica dos vinhos quanto mais se afasta de Gorizia, também pela influência do Bora, um vento frio e seco que vem da Eslovênia e equilibra a brisa temperada que sopra do mar Adriático. A ação dos ventos é particularmente sentida na região do Carso, beneficiando favoravelmente o cultivo das uvas vitovska e malvasia, brancas, e da terrano, tinta. A zona central e centro sul do Friuli, dominada em grande parte pela DOC Grave, cortada pelo rio Tagliamento, é topograficamente mais plana com solos de boa drenagem, favorecendo a produção de vinhos corretos de maior volume, a partir de uvas internacionais, caso da merlot, cabernet, chardonnay, sauvignon e pinot bianco, assim como, sem dúvida e cada vez mais, a pinot grigio, sucesso comercial principalmente nos Estados Unidos.

Vale ressaltar também que o Friuli como um todo faz parte da DOC Prosecco, estando, inclusive, na origem da recente mudança na Denominação, que a partir de 2009, junto como a região vizinha do Veneto, passou a ser o único território com direito à menção prosecco no rótulo. A questão era que prosecco é uma variedade de uva, o que não garantia registro de marca. Como tal, qualquer um, em qualquer parte do planeta, podia produzir um vinho com esse nome. Para preservar a denominação e a imagem do prosecco - bastante arranhada, apesar de continuar sendo um sucesso comercial mundo afora (as exportações para os Estados Unidos dobraram entre 2003 e 2010) -, os órgãos oficiais do setor na Itália foram, em meados da década passada, em busca de uma solução para o problema.

Deram sorte. Ainda que não fizesse parte da zona histórica de produção (está localizada no centro da região do Veneto), nem tivesse parreiras ao redor, havia um pequeno povoado chamado Prosecco, alguns quilômetros ao norte de Trieste, na vizinha Friuli, argumento inapelável (e único) para impedir sua utilização fora dos seus limites - o mesmo se passa com Champagne, por exemplo. Com isso, a DOC Prosecco foi estendida, abrangendo todo o canto nordeste do país, e oficialmente, a partir de 2009, o único lugar com direito ostentar o nome prosecco. A uva, por sua vez, foi rebatizada, passando a utilizar o nome glera, como era conhecida no passado. A zona histórica, formada pela área que engloba as cidades de Valdobbiadene a oeste, até Conegliano, a leste, recebem a designação DOCG, Denominazione di Origine Controllata e Garantita, acrescida da menção "superiore".

A posição de destaque que os vinhos brancos do Friuli sempre tiveram no panorama vitivinícola da Itália (os tintos também ganharam espaço ultimamente) se mantém soberano mesmo reconhecendo o avanço que outras regiões tiveram no gênero, caso dos Trebbiano d'Abruzzo, dos Greco di Tufo e Fiano di Avelino, na Campania, dos Etna, e do Trentino e Alto Adige, entre outros. Além de ganhar em pureza, os vinhos friulanos se valeram do caminho aberto por Josko Gravner - muitos produtores começaram com ele -, não necessariamente vinificados em ânforas, mas fermentados com as cascas, daí surgindo uma leva de rótulos diferenciados. Uma lista dos que provei nesta viagem é o tema da semana que vem.

colaborador-jorge.lucki@valor.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Acessos ao Blog

Post mais acessados no blog

Embaixada da Bicicleta - Dinamarca

Minha lista de blogs

Bookmark and Share