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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A esterilidade da violência


Antônio Delfin Neto*
Os fatos das duas últimas semanas merecem uma reflexão sobre as consequências da natureza do homem, em cujo DNA ela parecia ter esquecido o genes da convivência pacífica. A sua evolução genética sugere uma forte tendência à violência letal, confirmada pelas mais recentes pesquisas biológicas e arqueológicas. Essa violência, entretanto, tem diminuído através do tempo (talvez, até, por motivos genéticos), à medida em que as relações vigentes entre os homens no "estado da natureza original", evoluíram para relações tribais e, depois, para sociedades organizadas "politicamente" em Estados.
Lentamente, a experiência ensinou aos homens que eles só poderiam explorar a riqueza escondida nas suas potencialidades se o Estado, ele mesmo, fosse também sujeito aos controles de uma ordem superior pactuada livremente pela sociedade. A partir da segunda metade do século XVIII, ficou evidente que isso poderia ser conseguido com uma organização republicana democrática, onde: 1º) todos fossem iguais perante a lei geral e 2º) a administração do poder fosse separada em três braços: o Legislativo que define a lei, o Executivo, que a executa e o Judiciário, que controla a sua execução. Três poderes independentes e harmônicos, mas sujeitos a mecanismos universais de controles recíprocos.
A garantia da liberdade é a rejeição ao abuso de poder de qualquer um deles, mesmos os aparentemente justificados por circunstâncias especiais. Há um desconforto lógico envolvido na atual disputa entre o Legislativo e o Judiciário nessa questão: pode o controle do abuso de poder definido pelo Legislativo, quando avaliado pelo próprio Judiciário, ser limitador da ação do investigador, sem por em dúvida a qualidade das suas decisões? A conclusão é uma só. Essa disputa nasceu do visível oportunismo de ambas as partes: aproveitar a nossa perplexidade para defender ou ampliar a razoabilidade dos seus comportamentos. Isso nada tem a ver com a Operação Lava-Jato, que é um ponto de inflexão na história das relações incestuosas entre o Estado e o setor privado e deve continuar a receber todo o apoio. Talvez produza inconvenientes no curto prazo para o crescimento econômico, mas o acelerará, permanentemente.
 Brasil está dividido e ameaçado de falência múltipla de órgãos
Nesse quadro que parecia confirmar a base filogenética da violência letal humana, surge, de repente, uma tragédia. Um desastre aéreo rouba a vida de 71 pessoas. Em apenas um instante, expõe o amor fraternal, generoso e a propensão à simpatia escondidos na mesma "natureza" humana. Num mundo onde a tecnologia da comunicação eliminou a distância, explodiu um movimento de solidariedade de dimensão macroscópica. Universal, espontâneo, instantâneo, sem qualquer coordenação externa e fora do controle de qualquer poder, mostrou o outro lado "natural" das imensas riquezas do ser humano.
Dois movimentos tão antagônicos sugerem que o caminho a seguir é o do entendimento, da tolerância, da aceitação do "outro", sem preconceito de qualquer ordem e a firme defesa da república democrática, onde todos podem usar livremente os seus talentos; onde as diferenças de igualdade de oportunidades sejam continuadamente mitigadas e onde o trabalho que cada um tem que executar para a sua sobrevivência material, lhe deixe mais tempo para gozá-las. Ora, esses são os objetivos da Constituição de 1988. É por isso que vale a pena defendê-la!
Por outro lado, é preciso muita insensatez para não se sensibilizar com a dramática situação econômica em que o Brasil se encontra, revelada nos últimos números das Contas Nacionais e da Pnad Contínua, consequência da política econômica voluntarista iniciada em 2012. Tudo se agravou com a decisão da presidente de tentar a sua reeleição, mesmo que "tivesse de fazer o diabo". E fez! Em menos de um ano - ignorando a "tempestade perfeita" que estava cultivando - levou o país a uma recessão e a uma desorganização fiscal impensáveis. Estamos terminando 2016 com um déficit primário de 2,6% do PIB (contra 1,9% em 2015 e média de superávit primário de 2,6% do PIB no período 2011-2013) e com uma relação dívida bruta/PIB de 74% (contra 67% em 2015 e média de 52% no período 2011-2013). Mas essa é apenas a ponta do iceberg! O laxismo fiscal do poder central estimulou a clara violação da Lei de Responsabilidade Fiscal pelos Estados e municípios para pagar pessoal e custeio, escamoteados como "investimentos para o crescimento".
Não há o que discutir. O Brasil está dividido e sob a ameaça de falência múltipla de órgãos! É preciso uma urgentíssima retomada de consciência dos três Poderes. É preciso que acordem para o fato que uma grande calamidade está à nossa porta e que não podem continuar, insensatamente, disputando pequenos retalhos de poder. Não haverá acomodação possível se não se acalmar a histeria coletiva que hoje divide a sociedade brasileira. E não há solução institucional fora de uma eleição normal em 2018. Afinal, que desgraça precisamos ainda sofrer para que a histeria dê lugar à compreensão? Não cedamos à tentação de acender um fósforo para saber se há combustível no tanque!
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail: ideias.consult@uol.com.br

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