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segunda-feira, 13 de março de 2017

Qual globalização?

Por David Kupfer

O PIB brasileiro recuou 3,6% em 2016, praticamente repetindo o desempenho pífio de 2015 (-3,8%). Com isso, a renda nacional retornou aos valores verificados em 2011, um retrocesso que faz a década perdida de 1980 parecer café pequeno. Na ótica da oferta, com a exceção de distribuição de eletricidade, gás, água e esgoto e atividades imobiliárias, todos os demais ramos apresentaram resultados negativos, com piores desempenhos registrados exatamente pelos tradicionais carros-chefe da economia brasileira: construção, indústria de transformação, comércio, agropecuária, e transporte, armazenagem e correio, todos eles com quedas superiores a 5% no ano.
Na ótica da demanda, assim como havia ocorrido em 2015, todos os componentes domésticos apresentaram variação negativa, com o consumo das famílias recuando 4,2% e a formação bruta de capital encolhendo mais 10,2% no ano. Desde o início do mergulho da economia em 2013, o investimento já acumula uma assustadora retração de 40%.
Se todos esses dados já montam um quadro alarmante, ainda mais dramático é o cenário industrial. De acordo com a Pesquisa Industrial Mensal do IBGE, a despeito da variação positiva de 1,4% em janeiro último, após quase três anos em queda livre, a produção industrial retrocedeu em volume a níveis equivalentes aos do final de 2003.
O grande problema é que não somente nos números a indústria está retornando ao início dos anos 2000. O contexto daqueles anos também se percebe no restabelecimento das condições de contorno extremamente negativas para a atividade industrial que vigoravam à época: mercado interno estagnado e sem poder de compra, tendência de apreciação cambial provocada pelo modelo de estabilização dos preços e o hiato crescente de produtividade decorrente de defasagens tecnológicas impostas pela anemia do investimento.
Se o estreitamento dos espaços de inserção do Brasil na economia mundial já preocupava nos idos de 2003, 2004, o que dizer em 2017, após a ascensão da China e tantas outras transformações ocorridas desde então, coroadas, mais recentemente, pelo início do absolutamente imprevisível ciclo político norte-americano sob Trump.
Para dez em dez analistas, a retórica nacionalista de Trump vem sendo interpretada como um refluxo da globalização em favor de algum tipo de protecionismo adjetivado como retrógrado ou amadorístico. O resultado seria um enfraquecimento das chamadas cadeias globais de valor em favor de formas de organização da produção mais autárquicas, e de menor produtividade, em um movimento anacrônico que poderia trazer alguns benefícios no curto prazo, mas que estaria fadado a fracassar em prazos mais longos exatamente devido aos efeitos deletérios que imporia à eficiência do sistema.
A pax comercial chinesa foi muito pouco generosa com o Brasil e empurrou-o para a especialização regressiva
Contudo, desde Nelson Rodrigues sabe-se que toda unanimidade é burra. Por isso, convém pensar um pouco fora da caixa. Aqui vale buscar questionar o entendimento do que vem a ser a globalização contemporânea, especialmente em termos do papel exercido por duas configurações muito distintas de "cadeias globais de valor": a produção fragmentada e a especialização vertical.
A produção fragmentada é uma divisão internacional do trabalho comandada por empresas líderes globais que se nutrem de liberalização e desregulamentação dos fluxos de mercadorias e capitais para maximizar as suas rendas. Embora também envolva a pulverização das bases produtivas em diversos países, a especialização vertical é diferente. Mais complexa, na especialização vertical a descentralização reserva para cada sistema local de produção uma família de atividades com maior conteúdo tecnológico, propiciando uma maior capacidade de apropriação dos ganhos às empresas e países integrantes. Incluem-se aí, e isso é fundamental, as múltiplas externalidades positivas que comumente acompanham a indústria.
Tipicamente asiáticas, os níveis imbatíveis de competitividade alcançados pelos esquemas de especialização vertical não provêm somente de tecnologia e eficiência ao nível das empresas. Advêm também da preservação da competitividade das moedas, subsídios, acesso favorecido a capital e outros incentivos manejados pelas políticas industriais desses países.
A guinada prometida por Trump pode não ter como foco reintrojetar a indústria no território norte-americano, como especulam os analistas. O objetivo pode ser reorientar os esquemas de fragmentação visando devolver os seus "hubs" para os EUA. A ação crucial, portanto, é quebrar a economia política dos esquemas de especialização vertical que nucleiam as cadeias de valor asiáticas, especialmente as organizadas pelas empresas chinesas.
Por isso o Nafta, uma porta de entrada desse esquema, é o alvo imediato. Por isso também o rompimento com a Parceria Transpacífico, uma extensa teia de acordos (de investimento, propriedade intelectual etc.) que os EUA tentavam construir para dar suporte institucional a um esquema de especialização vertical sob liderança norte-americana. Afinal, porque duelar com a China escolhendo justamente as armas dela?
Enquanto durou, a pax comercial chinesa foi muito pouco generosa com o Brasil, tendo empurrado o país para o córner da especialização regressiva, em parte devido a pequena capacidade de resposta competitiva do nosso sistema industrial. Mas daí a se imaginar que uma polarização comercial EUA-China irá automaticamente abrir oportunidades para o Brasil vai uma grande distância.
Além das incertezas que inapelavelmente permearão todo o processo, tanto mais quanto mais conflitivo ele venha a ser, esquemas de fragmentação produtiva não se notabilizam pelo potencial distributivo nem costumam contemplar os sócios mais fracos com fatias recompensadoras dos bons empregos e da renda gerada.
David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br.

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