Reflexões e artigos sobre o dia a dia, livros, filmes, política, eventos e os principais acontecimentos

terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Agente Secreto. Quando o cinema é o próprio disfarce


André Azenha*

Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho subverte expectativas. O filme começa feito um thriller de espionagem, mas logo se transforma em algo maior: uma colagem de gêneros, ecos e memórias cinematográficas. Kleber faz o que sempre soube fazer — cria a partir das ruínas, mistura política, melancolia e invenção formal. Mais ou menos à maneira de Quentin Tarantino, ele recicla cults e clássicos: da Nouvelle Vague ao Cinema Novo, do cinema de retomada ao asiático, do europeu ao nordestino. O resultado é um mosaico em que o Brasil se revela por reflexos, lapsos e silêncios.

A história de Marcelo (Wagner Moura), fugitivo que desembarca no Recife de 1977, é apenas o fio condutor. Por trás dele, o que se esconde é o retrato de um país que apaga pessoas, lugares e lembranças — o mesmo Brasil de Aquarius, Bacurau e Retratos Fantasmas. A fotografia, de tons sépia e luz difusa, remete a um cinema antigo, quase analógico, em que cada plano parece resgatar uma lembrança. O São Luiz, o centro, a Praça do Sebo, o som abafado das fitas e dos projetores: tudo pulsa como um inventário da memória recifense.

Como em Recife Frio, seu curta-metragem mais provocador, Kleber volta à cidade como se fosse um personagem — viva, contraditória, ameaçadora. E é ali que a trama se expande para um território moral: um Brasil de arquivos censurados, polícias corruptas e identidades ocultas. Cada personagem parece ser um agente duplo de si mesmo, e o passado insiste em vazar pelos poros do presente.

Mas a verdadeira subversão de Mendonça Filho está na estrutura. Quando esperamos a catarse, o filme corta o tempo — num gesto à la irmãos Coen, como em Onde os Fracos Não Têm Vez ou Bravura Indômita. O que seria explosão vira silêncio; o que prometia vingança se dissolve em melancolia. É aí que o filme revela seu segredo: não é sobre espionagem, mas sobre esquecimento.

Com atuações intensas de Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Tânia Maria (uma revelação aos 78 anos), O Agente Secreto é ao mesmo tempo um épico político e uma elegia à memória. Kleber transforma o cinema em espelho e em disfarce — um lugar onde o que é apagado continua a viver, teimosamente, na luz da tela.

*Professor é crítico de cinema

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Acessos ao Blog

Post mais acessados no blog

Embaixada da Bicicleta - Dinamarca

Minha lista de blogs

Bookmark and Share