André Azenha*
Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho subverte expectativas. O filme começa feito um thriller de espionagem, mas logo se transforma em algo maior: uma colagem de gêneros, ecos e memórias cinematográficas. Kleber faz o que sempre soube fazer — cria a partir das ruínas, mistura política, melancolia e invenção formal. Mais ou menos à maneira de Quentin Tarantino, ele recicla cults e clássicos: da Nouvelle Vague ao Cinema Novo, do cinema de retomada ao asiático, do europeu ao nordestino. O resultado é um mosaico em que o Brasil se revela por reflexos, lapsos e silêncios.
A história de Marcelo (Wagner Moura), fugitivo que desembarca no Recife de 1977, é apenas o fio condutor. Por trás dele, o que se esconde é o retrato de um país que apaga pessoas, lugares e lembranças — o mesmo Brasil de Aquarius, Bacurau e Retratos Fantasmas. A fotografia, de tons sépia e luz difusa, remete a um cinema antigo, quase analógico, em que cada plano parece resgatar uma lembrança. O São Luiz, o centro, a Praça do Sebo, o som abafado das fitas e dos projetores: tudo pulsa como um inventário da memória recifense.
Como em Recife Frio, seu curta-metragem mais provocador, Kleber volta à cidade como se fosse um personagem — viva, contraditória, ameaçadora. E é ali que a trama se expande para um território moral: um Brasil de arquivos censurados, polícias corruptas e identidades ocultas. Cada personagem parece ser um agente duplo de si mesmo, e o passado insiste em vazar pelos poros do presente.
Com atuações intensas de Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Tânia Maria (uma revelação aos 78 anos), O Agente Secreto é ao mesmo tempo um épico político e uma elegia à memória. Kleber transforma o cinema em espelho e em disfarce — um lugar onde o que é apagado continua a viver, teimosamente, na luz da tela.
*Professor é crítico de cinema



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