Observatório do Cotidiano

Reflexões e artigos sobre o dia a dia, livros, filmes, política, eventos e os principais acontecimentos

domingo, 12 de janeiro de 2025

Entrevista do cineasta Fernando Coni ao jornal PASQUIM - 1974


Jaguar: Pra mim, a profissão ideal é ser cineasta. Cineasta leva tudo la boa vida, sem trabalhar quase nunca, e inclusive passando por intelectual. Faz um filme por ano, fatura paca, recebe elogios da crítica, e passa o resto do ano curtindo pelos bares sem fazer pô nenhuma. Esta é a minha visão do cineasta brasileiro.

Fernando Campos: Eu acho a mesma coisa em relação ao ator. E me parece que você tem uma grande vocação para ator. Um dos meus grandes sonhos é realizar um filme onde você seja ator.

Jaguar: até que enfim alguém reconheceu!

Fernando: Mas cineasta é rua da amargura mesmo...

Jaguar: Como é que um cara vira cineasta no Brasil?

Fernando: Hoje eu não sei. Há uns dez anos atrás era mais barato fazer um filme. Primeiro, ainda não havia a mística do colorido. Segundo, naquela epoca havia o Dico.

Marizalva Aleixo: Dico, do Banco Nacional de Minas Gerais.

Jaguar: A fada protetora dos cineastas.

Fernando: Os filmes geralmente eram feitos através da CAIC e dos papagaios do Banco Nacional de Minas Gerais.

Jaguar: Você nasceu onde?

Fernando: Na Bahia.

Demo: mais um baiano!

Fernando: A família de minha mãe é italiana. Uma família de fazendeiros exportadores. Meu pai era médico.

Jaguar: Você teve uma infância de alta classe média, né?

Fernando: É... Fiquei na Bahia até os dezesseis anos. Nessa época eu tinha um amigo de infância, o Araújo, e nós escrevemos juntos um roteiro. Chamava-se "Festa". Ai fui obrigado a sair da Bahia porque já não havia mais colégio pra mim. Fui expulso de todos (sussurros).

Jaguar: Você era o que se chama hoje de "garoto com carência afetiva"?

Fernando: Não, o meu problema era o oposto. Eu tenho seis irmãs e um irmão. Eu vivia num mundo feminino.

Jaguar: E não virou boneca!

Demo: Até agora não.

Ferdy Carneiro: Ainda há uma esperança.

Jaguar: Tinha tudo pra ser, só não foi de bobo. Aposto que quando adolescente você se sentia deslocado e uma figura eleita pelo destino.

Fernando: Deslocado sim.

Jaguar: Como todo adolescente.

Fernando: Mas isso foi uma coisa que me marcou profundamente. Sempre achei que eu não fazia parte do conjunto.

Jaguar: Você lia Baudelaire e Rimbaud e Nietzsche.

Fernando: Lia. A essa época surgia na Bahia a "Escola Baiana". Era Mário Cravo, Carybé, Jenner Augusto, Carlos Bastos, que faziam uma arte deslumbrada, uma arte folclórica. Um dia eu ia passando na rua e entrei numa exposição. Era a exposição de um pintor chamado Rubem Valentim. Não tinha nad que ver com a "Escola Baiana". Fui procurar Valentim. Era um maldito na Bahia. Houve um momento em que foi expulso de lá. Caíram na bobagemd e dar uma coluna para ele e ele desancou com os ídolos da Bahia. Uma semana depois, estava em seu atelier e chegou uma comissão composta de Mário Cravo, Carybé, Jenner Augusto, que deu a Valentim uma passagem de ida. Foi expulso da Bahia!

Jaguar: Daí foi pra São Paulo em estado de revolta contra a situação cultural na Bahia!

Fernando: Eu tinha um certo nojo por aquela coisa fácil, aquele folclorismo.

Jaguar: Quem era a tua turma lá?

Fernando: Eu freqüentava um bar onde freqüentavam Luis Lopes Coelho, Sérgio Millieu, Francisco de Almeida Salles, Delmiro Goncalves, Rebolo Gonçalves, Aldemir Martins, Antônio Bandeira, e principalmente a clã dos Abramo.

Ferdy: Fernando, voce é um dos primeiros caras que quis filmar Oswald de Andrade. "Tupy or not Tupy". (gritos) O que seria isso, e por que você não consegue realizar. Escuta, Jaguar, você disse que vida de cineasta é boa.

Jaguar: É porque esta entrevista é didática, dirigida às novas gerações.

Fernando: Baixou o espírito do Mário (de Andrade) nas coisas que as pessoas fazem sobre Oswald de Andrade. O Mário e o Oswald brigaram pela vida. Uma vez perguntaram ao Oswald por que ele tinha brigado com o Mário e ele respondeu: "Questão de morais de andrade". O nome do Mário era Mário Morais de Andrade. Tudo que se faz sobre Oswald, baixa o espírito do Mário e embanana tudo. E as pessoas são muito sérias. Tudo que é feito sobre Oswald de Andrade é incrivelmente sério. Não há nenhuma molequeira. é aquele (*). "Tupy or not tupy" era um filme realmente oswaldiano. Começava com um navio. Oswald em frente a um navio. Com uma francesa ao lado. O navio naufragava e Oswald se desdobrava em dois personagens. Um era o bispo Sardinha, devorado...

Demo: Esse era um bom papel pro Jaguar.

Jaguar: Eu não gosto de peixe, pô!

Fernando: O outro era Caramuru. "Caramuru, filho do fogo, sobrinho do trovão, atirou num urubu, errou a direção, acertou num gavião." Quando dava o tiro, os índios caíam de joelhos e gritavam: "Pajé! Paje!" Aí entrava uma música: "Bota o pajé na roda! Tira o pajé da roda!". É a história do Brasil contada numa base bem moleque, e todos os governadores do Brasil vão entrando e saindo da roda. Até que chegava na fase de "guerreiros com guerreiros fazem zigui zigui zá".

Ferdy: É um tratamento à maneira de Oswald de Andrade,

Jaguar: Você veio pro Rio. E bateu aqui em que ambiente?

Fernando - Com Aloisio Magalhães

Jaguar: Artes gráficas suíças.

Fernando: Não, naquela época Aloisio tava começando. Era, também, um grande boêmio.

Jaguar: Freqüentava todos os nossos bailes.

Fernando - Fechava o escritório e ia todo mundo pro Albino.

Glauco: Você acompanhou desde o movimento concretista até o cinema novo. Onde começa o cinema novo? É decorrente ou não do movimento conccretista?

Fernando - Não houve nenhuma relação. O cinema novo começa com os trabalhos de Nelson Pereira dos Santos.

Glauco: O cinema novo não é uma retomada da Semana de 22?

Fernando: Não. A maioria das pessoas era hostil à Semana de 22. Naquela época estavam impregnados de realismo socialista.

Ferdy: Na sua opinião, qual é o marco do cinema novo?

Fernando: Barravento. Eu gostava de todas as pessoas que faziam parte do cinema novo. Mas como time, eu não me entrosava. Virava grupo, clã. Era o time de futebol do cinema novo. Joaquim Pedro era ponta-esquerda. (gritos e sussurros)

Ferdy: E a Novacap?

Fernando: Em 58, 59 fui trahalhar na equipe de urbanismo de Lúcio Costa.

Jaguar: Urbanismo?

Fernando - Cortes, curvas de níveis, essas coisas. Era o início do desenvolvimento do Plano Piloto. Havia aquele negocio de A-U: Arquitetura, Oscar Niemever, Urbanismo, Lúcio Costa. Era um ambiente muito eclético: discutia-se desde técnica de futebol a prolegômenos de uma possível metafísica da esperança. O Instituto Nacional de Cinema Educativo queria fazer um filme sobre Brasília. Já tinham filmado alguma coisa , e pra salvar o filme. oueriam uma narracão do Lúcio Costa. Foram procurar o Dr. Leicio...

Jaguar: Por que você, que é um cara iconoclasta, chama ele de Dr. Lúcio?

Fernando: Ele só pode ser chamado de duas maneiras: ou Dr. Lúcio ou Velho Vadio. O que ele é. Tá sempre disponível, e o seu pensamento não é impregnado. Dr. Lúcio disse: "Eu não vou escrever um texto pra você. Vou te dar uma pessoa pra você fazer um filme sobre Brasilia". E eu fiz esse meu primeiro filme: Brasilia, Planejamento Urbano. Sempre que se falava em Brasilia, falava-se em arquitetura. Brasília parecia muito mais uma coisa do Oscar do que do Dr. Lúcio. Esse documentário foi meu primeiro filme.

Jaguar: Qual foi o resultado desse filme?

Fernando: Desatroso, como tudo que eu faço (sussurros).

Jaguar: Seu primeiro filme de longa-metragem foi Luba

Fernando: Eu morava na Rua Saint Roman e o o que eu conhecia era o Mau-Cheiro, Liliane, era isso que eu sabia falar.

Jaguar: Caio Mourão, Ferdy Carneiro, Nelson Camargo. 

Fernando: Eram esses os meus personagens. Eu nunca podia usar como personagens a gente do morro, cangaceiros. 

Ferdy: Esse filme seria uma crônica de Ipanema.

Fernando: O nascimento de lpanema. Foi um filme quase todo filmado em bar.

Jaguar: Eu vi uma cena desse filme sendo filmada na casa de Marcos Vasconcellos, na Rua Peri. Enquanto o pessoaI filmava lá fora, você bebia comigo, e nem tomava conhecimento do filme. Fiquei impressionado: o filme tava comendo lá e voce bebendo comigo.

Fernando: Ai é que entra aquela mística de seriedade. As pessoas são profundamente sérias, e acreditam nuns empulhos como enquadramento, distanciamento.

Jaguar: Quem estava praticando o distanciamento era voce. Com um copo na mão.

Fernando: Ao contrário, eu estava no total envolvimento, porque aquilo que estava sendo filmado tinha que ver comigo, com você, com a gente bebendo. E qualquer coisa que eu faça, se não tiver um componente lúdico, não interessa. Todo mundo que estava filmando ali estava cansado de saber o que estava fazendo. Eu sei exatamente o que eu vou filmar. E raramente eu repito. Acredito que a primeira filmagem é a melhor. E tenho tanta certeza das coisas, que não preciso ficar lá aporrinhando uma atriz, aporrinhando um fotógrafo.

Jaguar: Você é um criador de filmes. Você bola a historia, faz um roteiro e depois você dirige. É sempre assim?

Fernando: Em todos os filmes.

Ferdy: Você já foi acusado muitas vezes de querer ser o diretor e o roteirista e tal.

Fernando: Pelo contrário. Eu tava deixando eles trabalharem e fui tomar meu uísque com o Jaguar.

Jaguar: Foi daí que eu tive a idéia de que vida de cineasta era uma moleza.

Rose Rondelli: Todo mundo é muito sério. Eu acho você seríssimo. Daqui dessa sala, o mais sério é você.

Fernando: Eu faço questão de cultivar muito o "nervo lúdico". E esse nervo lúdico que me coloca fora da seriedade. Eu me exponho muito. A minha única defesa é não ter defesa. Não tenho medo do ridículo. Nunca posso ser ridículo, porque já se disse que há três coisas que não podem ser ridículas: uma crianca. um louco, e um poeta.

Rose: Você pode não ter defesas e ser uma pessoa séria.

Fernando: Séria, mas passando por cima. 

Rose: Seria séria entre aspas?

Fernando: "Séria". Um boy scout.

Ferdy: Além dos longas, você tem os curta-metragens. Seu filme com Newton Cavalcanti foi uma bela realização. Ainda assim, você se baseou nos dois pés: a gravura do Newton e Edgar AIIan Poe.

Fernando: É. Por acaso Newton tinha feito uma série de ilustrações para Grotesco Arabesco. Ele tem um sentido de despojamento total diante das coisas. Não tem nenhuma postura. Vê tudo como se estivesse vendo pela primeira vez. Não tem medo de esculhambar. Newton é um grande moleque.

Jaguar: Você, evidentemente, não deve ter muito senso prático. Hoje em dia, fazer um filme, é, principalmente, uma operação comercial e financeira. Aparentemente você trabalha sozinho. Ou tem algum gerente?

Fernando: Não, mas consigo arrumar pessoas mais loucas do que eu.

Jaguar: Quem é que financia as suas maluquices?

Fernando: Você viu o filme do Jorge Ben?

Jaguar: Claro. Aliás, adorei o filme.

Fernando: Esse filme foi financiado pelos dois caras mais loucos que existem no Brasil. Um é japonês voador chamado Massao Ohno (risos).

Jaguar: Massao Ohno certa vez publicou um livro meu. Imprimiu, ficou uma nota, e nunca pôs à venda. Eu não entendo esse cara.

Fernando: Maluco total. Outro é Aurora Duarte.

Jaguar: Hoje, quanto sai um filmezinho modesto?

Fernando: No mínimo, uns 600 milhões.

Jaguar: Esses 600 milhões não se encontra no Peg-Pag.

Rose: Assaitando o Peg-Pag?

Jaguar: E as pessoas continuam a fazer filmes. É isso que eu acho Impressionante. E quase impossível fazer um filme.

Fernando: A partir de 1968, houve uma mudança radical no cinema brasileiro. Tornou-se muito difícil fazer cinema. O cinema autoral entrou em crise... Pela exigência de produções mais caras – principalmente o uso da cor, que encarece muito o filme. E veio novamente a neo-chanchada.

Jaguar: Ainda Agarro Essa Vizinha.

Fernando: Agora, tudo indica que a política autoral voItou. A partir de São Bernardo, que é muito importante nesse sentido. Leon Hirszman retoma a tradição de cinema autoral. Aquela boa-vida que Jaguar disse que cineasta tem: pra fazer São Bernardo Leon penou. Poucas pessoas sofreram tanto pra fazer uma obra de arte. Leon esteve na rua da amargura, foi injustiçado, chamado de coisas incríveis pra fazer um filme digno: São Bernardo. Depois disso vieram SagaranaOs Condenados.

Jaguar -- Tá abrindo uma nova. Vocês estão vendo a luz no fim do túnel. Só espero que não seja um trem vindo na direção oposta.

Jaguar: Qual o seu relacionamento com os críticos?

Demo: Existe algum que te apóie?

Jaguar: Existe algum vislumbre de melhoria na crítica?

Fernando: Tem algumas pessoas que eu acho sérias, como o Fernando Ferreira, por exemplo.

Jaguar: Qual é o cara com quem você tem mais ligações de idéias?

Fernando: Julinho Bressane e Rogério Sganzerla.

Jaguar: Por falar nisso cadê o Sganzerla?

Fernando: Tá na Bahia. Vai voltar a trabalhar, tá com planos maravilhosos. Julinho chegou do México há uns quinze

dias atrás.

Jaguar: Essa pergunta é inconcebível numa entrevista de alto-nível como esta, mas você vai ter ter tempo para responder. Quais são os dez filmes que, digamos, levaria para uma ilha deserta? (risos).

Fernando: Perguntaram ao Chesterton quais eram os dez livros que ele levaria para uma ilha deserta. Ele disse: "Só levaria o "Manual dos Construtores de Barcos"."

Jaguar: Não sai por essa tangente não. Isso é importante pra localizar você.

Fernando: Filmes brasileiros?

Jaguar: Filmes de todos os tempos. Não são os melhores filmes, mas o mais importante pra você em determinada época. Pode ser Bambi, pode ser até um filme de Maciste. O primeiro filme de Maciste, com Steve Reeves, é maravilhoso. Esquece ilha deserta, se você não gostou da idéia.

Fernando: Eu teria que fazer uma pesquisa, para incluir o primeiro filme que eu vi. O primeiro filme que eu me lembro de ter visto foi Os Três Padrinhos. Hoje eu não sei qual é, porque esse filme tem três versões. Mas foi o primeiro filme que eu vi.

Rose: Por que, te impressionou?

Fernando: Me impressionou profundamente. (Sussurros) Outro filme que que impressionou bastante – como garoto, não como cineasta – foi Gunga Din.

Jaguar: Gunga Din! Eu também! Cary Grant chegando sozinho e dizendo pra 200 hindus: "Estão todos presos." Sarro!

Fernando: Outro filme em que eu me diverti muito, que me pareceu de um nonsense total, foi Escola de Sereias.

Rose: Passou outro dia na televisão, com Esther Williams.

Jaguar: Carlos Ramírez cantando: ao lado da piscina "Bonequinha Linda..."

Fernando: Todo um tropicalismo já tá naquele filme. Houve outro filme nesse esquema chamado Paixões Tormentosas, com Maria Antonieta Pons.

Todos: Aah! (gritos e sussurros)

Fernando : Esses filmes passavam no Cine Jandaia, na Bahia. Quando ela começava a dançar, jogavam camisas pra cima, tiravam o sapato, a chamada esculhambação total. Depois eu vi esse filme noutro cinema, o Popular. Esse cinema, atrás da tela, tinha uma espécie de arquibancada.

Rose: Atrás?

Fernando: O pessoal pagava meia, assistia o filme atrás da tela pelo avesso. Agora vamos dar um pulo: O Cão AndaluzJoana D’Arc do Dreyer, e tudo que é feito pelo Bresson.

Jaguar: Um Condenado à Morte Escapou. E um filme muito chato, mas é um filme perfeito.

Rose: Eu ouvi um negócio de "maldito" aí. Por que ele é maldito? E ele também se acha. Falou no começo da entrevista que tudo que fazia não dava certo.

Jaguar: É que todo mundo odeia ele.

Rose: Por que todo mundo odeia ele, Jaguar?

Jaguar: (enfurecido) Porque ele é odioso! Abominável!

Fernando: Cada vez mais eu acho que o grande problema do artista moderno é não se comunicar. "Eu procuro uma dificuldade."

Jaguar: Ô garotão, cumé quié? Explica isso aí.

Fernando: Eu acho que em arte – aquele negocio do Chacrinha – quem não se comunica se trumbica. Uma abelha se comunica, uma formiga se comunica, uma máquina se comunica. Comunicação é uma coisa mecânica. E o problema do artista é criar dificuldades. E dar informações novas. Fugir à redundância. Se expor à entropia, dispor à

entropia. Um artista, na medida em que comunica, renega a coisa mais importante que tem dentro dele, que é o dado novo que pode dar. Comunicação é pra formigas e abelhas, mas não pra homens. Os homens têm que interpretar.

Jaguar: Esta entrevista esta sendo feita no dia 26 de setembro de 1974. O que está pintando pro cinema brasileiro?

Ferdy: Fernando falou que a partir de São Bernardohouve um momento no cinema nacional. Depois disso houve outros. Vai Trabalhar VagabundoJoanna FrancesaA Rainha DiabaSagarana. Tá acontecendo uma maturidade no cinema nacional.

Fernando: Acho que sim. Parece que quase todos os diretores que naquela época estavam muito preocupados com uma visão pessoal das coisas estão querendo abrir um pouco.

Glauco: Em que você está pautando o seu cinema?

Fernando: Todo mundo está querendo incorporar dois tipos de experiência. A experiência que foi dada pelo cinema, autoral – e com o cinema novo houve um cinema como o de poucos países, do diretor ser dono de seu filme, fazer o que quiser com ele. Isso deu uma liberdade, deu em que a maior parte dos diretores brasileiros sabem dominar e articular a sua linguagem – junto com uma coisa mais ampla, vai conseguir um cinema de sucesso de público, Jabor (Arnaldo) fez o filme mais maldito que foi Pindorama e depois fez um grande sucesso de público, Toda Nudez Será Castigada.

Glauco: Nós estamos num impasse. Nós vamos caminhar com o cinema urbano ou com a estrutura do cinema novo?

Fernando: Acho que.a tendência de todo mundo é conjugar as duas coisas.

Jaguar: Seus filhos, têm quantos anos? 

Fernando: 15, 14, 6 e 7 meses.

Jaguar: Você concorda com a frase lapidar de Millôr Fernandes: "Filho é um nervo exposto?" (gritos e sussurros)

Fernando: Acho maravilhoso ter filhos.

Jaguar: Você é um artista maldito que acha que filho é uma dádiva divina. Que maldito de araque! (risos) (acusadores). Você nem ao menos toma absinto, como Baudelaire!

Fernando: E continuo frustrado por não ter feito um filme com você.

(Entrevista publicada em O Pasquim, em 12 de novembro de 1974

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Ney Latorraca, o grande ator que usava bermudas, camiseta e sandálias

Julinho Bittencourt*

O Brasil e o mundo perderam na manhã desta quinta-feira, 26 de dezembro, o grande ator Ney Latorraca. Ele estava internado desde o último dia 20 de dezembro na Clínica São Vicente, na Gávea, Rio de Janeiro, por conta de um câncer de próstata e morreu em decorrência de uma sepse pulmonar.

Já a cidade de Santos, onde nasci e passei a maior parte da vida, perde um de seus filhos ilustres. Para muito além do ator, perde o sujeito divertido, sagaz, filho do conhecido crooner Alfredo Simoney, que nossos pais e avós dançaram ao som de sua voz em grandes bailes do passado. Perde o sujeito que sentiu a primeira faísca do teatro percorrer o seu corpo no lendário colégio Canadá. O jovem repleto de sonhos que foi para São Paulo montar a peça "Reportagem de um tempo mau", escrita e dirigida pelo também santista Plínio Marcos, no Teatro Arena. Lá, assim como vários outros, o espetáculo foi censurado pela ditadura, alguns atores foram presos e Ney voltou para sua terra. Novamente em Santos, insistiu no teatro e tudo o mais é história.

O bad boy Mederiquis

A primeira imagem que lembro do Ney foi na divertida novela “Estúpido Cupido”, em que fazia o papel do bad boy Mederiquis, fã de Elvis Presley e líder da banda de rock Personélitis Bóis. Na época, entre 1976 e 1977, ele já estava com 33 anos e teria que fazer o papel de um sujeito de 17. Só aceitou com a condição de poder improvisar com os figurinos e, sobretudo, com uma lambreta, que batizou de Brigite.

Revisar a trajetória triunfal de Ney Latorraca é algo que todos os jornais do país estão fazendo neste exato momento. Foram inúmeros papéis inesquecíveis. Só na Globo foram 18 novelas, seis minisséries e oito seriados. Além disso, ainda estrelou em 23 longas-metragens e 13 espetáculos teatrais.

O Mistério de Irma Vap

Entre as peças, vale destacar a fabulosa "O Mistério de Irma Vap”, de Charles Ludlam, em que ele e Marco Nanini, dirigidos por Marília Pêra, conseguiram a proeza de ficar 11 anos em cartaz. Os dois atores, no auge da técnica e vigor físico, se alternavam entre inúmeros personagens, alternando gêneros e trocas de roupas em velocidade vertiginosa.

Certa vez, em uma das inúmeras visitas à antiga redação do jornal A Tribuna, de Santos, encontrei com ele na recepção. Estava acompanhada da querida amiga Nancy Alonso que me apresentou: “este é músico”. Ele, então, soltou um enorme palavrão e falou, para gargalhadas gerais: “pior que isso só ser ator!” 

O que mais me espantou naquele dia, além de seu humor peculiar, foi a extrema simplicidade com que estava vestido, de bermudas, sandálias e camiseta. Nada nele, nenhuma espécie de exotismo nas roupas, denunciava ou enfeitava o grande artista que sempre foi. 

Ney Latorraca partiu para a eternidade. Estará na companhia de outras santistas fundamentais para as artes cênicas, entre eles Sérgio Mamberti, Plínio Marcos, Tanah Correa, Rubens Ewald Filho e tantos outros. Uma grande e irreparável perda.

* Jornalista



Economia foi bem em 2024


Armando Avena*

O Brasil teve o melhor natal dos últimos anos e a explicação são os fundamentos da economia, principalmente sob o ponto de vista produtivo. O Natal foi bom na Bahia e no Brasil porque a taxa de desemprego está em 6,4%, um dos patamares mais baixos da história e porque mais trabalhadores receberam o 13º salário.

Isso significa mais renda para as famílias e esse montante, aliado a transferência de renda pelos programas sociais, aumentou a capacidade de compra da população.   A Fecomercio/SP, por exemplo, estimou um crescimento de 9% nas vendas do varejo em relação ao Natal do ano passado. Já a Fecomércio/Ba projeta um crescimento de 13% nas vendas do varejo baiano em relação ao Natal de 2023. Esta expansão do varejo baiano representa um faturamento estimado de R$ 22 bilhões em dezembro, o melhor desempenho desde 2015.

A Associação Brasileira de Shoppings Centers projeta um crescimento das vendas nos shoppings em 7%, mas as projeções da Fecomércio para a Bahia são maiores e, a julgar pelo movimento de clientes nos shoppings de Salvador, as vendas vão superar em muito as projeções nacionais.

O destaque nas vendas  foi, sem dúvida, o setor de Supermercados, com crescimento previsto de 17%, correspondendo a R$ 9 bilhões, ou 41% do total das vendas do varejo no estado, mas os demais setores também apresentaram bom desempenho. Esses números são projeções e precisam ser confirmados, mas não há dúvida de que, sob o ponto de vista do comércio, esse foi o melhor Natal dos últimos 10 anos.

O mesmo parece ter acontecido no setor de serviços. No setor de turismo, a taxa média de ocupação dos hotéis em Salvador foi de 78%, um desempenho excepcional e que deverá  superar os 80% de ocupação em dezembro. Já a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes – Abrasel estima um crescimento de até 20% no faturamento em dezembro. Mas na Bahia as estimativas são maiores e a Abrasel-Bahia estima um incremento de até 70% nas vendas durante a alta estação.

Se a economia está tão aquecida, porque então os economistas do mercado financeiro estão a reclamar todos os dias afirmando que o país está com problemas. A resposta é simples: eles estão falando do futuro e não do presente. A inflação de 2024 será de 4,8%, um pouco maior que a meta, e essa inflação pequena não inibe o consumo.

Os economistas do mercado financeiro baseiam todas as suas projeções no comportamento futuro da inflação, da dívida e do déficit nas contas públicas, afirmando que esses indicadores estão se deteriorando. Mas não se sabe se esse futuro virá ou se o governo seguirá remendando a política gradualmente, de modo a não gerar recessão, nem grandes sacrifícios à população. No próximo ano volto a esse assunto, por enquanto vale dizer que este ano a economia vai bem e esse Natal de compras em alta foi a prova disso.

*Economista e Escritor foi Secretário de Planejamento do Governo da Bahia. Membro da Academia Baiana de Letras.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Contrato de Concessão da Malha Ferroviária Baiana vai à Audiência Pública

A renovação da concessão da malha pertencente à Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) voltará a ser discutida em audiência pública. A retomada das sessões foi aprovada pela diretoria da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). A decisão estabelece a data limite de 14 de outubro para que interessados possam apresentar contribuições à proposta. A audiência ainda contará com reuniões presenciais em quatro capitais, sendo a de Salvador, no dia 4 de outubro. Ajustes na proposta Com 30 anos de duração, a concessão da FCA foi efetivada em 1996 e terminaria em 2026. No entanto, em 2015 a concessionária protocolou manifestação de interesse na prorrogação antecipada do contrato junto à ANTT. A primeira audiência pública a respeito da renovação ocorreu em 2021, mas não chegou a ser concluída e precisou de ajustes. Entre as alterações no projeto que entrará em audiência pública em relação à proposta anterior está a obrigação de a concessionária executar as obras de acesso ao Porto de Aratu, na Bahia, assim como de realizar intervenções para solucionar conflitos urbanos em 40 municípios. Além disso, estudos sobre trechos para futuros investimentos deverão ser realizados pela empresa. Os modelos de renovação de concessão também passaram por atualizações, de acordo com as novas diretrizes estabelecidas pelo Ministério dos Transportes. Desse modo, o valor de outorga a ser pago pela renovação chega a R$ 1,3 bilhão e a indenização dos trechos inativos que a FCA pretende devolver – aproximadamente 2,1 mil quilômetros – está estimada em R$ 3,6 bilhões. 
Malha extensa 
A malha ferroviária concedida à FCA conta com 7.856,8 quilômetros de extensão, cruzando os estados da Bahia, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe, além do Distrito Federal. Além disso, tem distribuição pelos corredores Centro-Leste, Centro-Sudeste, Minas-Bahia e Minas-Rio. Assim, a FCA é considerada a maior malha ferroviária em extensão e alcance do Brasil.
*Fonte: Ministério dos Transportes

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O pálido ponto azul


Carl Sagan*
 
Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada "superestrela", cada "líder supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali - em um grão de pó suspenso num raio de sol. A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta auto importância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios. A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto. Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o "pálido ponto azul", o único lar que conhecemos até hoje. — *Carl Sagan foi um brilhante astrofísico

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