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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago: Livres da carga ideológica do autor, romances poderão sofrer avaliação menos apaixonada

"Permanência da vasta obra de José Saramago será agora posta à prova"
Adriano Schwartz*
Em uma das mais belas cenas escritas por José Saramago, ao final de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", o protagonista acompanha o fantasma de Fernando Pessoa para a morte.
Descobre que a capacidade de ler seria a primeira coisa que perderia na nova circunstância, instante derradeiro em que "o mar acabou e a terra espera".
Mesmo assim, ele carrega consigo um livro, uma obra que tanto o perturbara nos meses anteriores, pois desse modo deixaria o mundo aliviado de um enigma.
Saramago não levou livro algum e, infelizmente, não irá mais se preocupar com enigmas ou leituras.
Os seus livros, contudo, ficam, e a permanência deles será agora posta à prova.
Essa questão será solucionada ao longo do tempo, mas desconfio que a parte mais importante de sua produção -aquela que começa com o "Memorial do Convento" e vai até "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou talvez o "Ensaio sobre a Cegueira" (apesar de seu final problemático)-, resistirá e ganhará novos adeptos à medida que for diminuindo o impacto da figura forte e polêmica de seu autor na compreensão dos textos.
CARGA IDEOLÓGICA
Livres da excessiva carga ideológica com que sempre foram associados e que contaminou boa parte de sua repercussão crítica, esses romances lançados em um período tão curto, de 1982 a 1995, serão avaliados de modos menos "apaixonados" e, creio, mais positivos.
Será o momento em que ficarão ainda mais claros o elaborado jogo entre memória e literatura de "O Ano da Morte", a construção sofisticada de "O Evangelho", o delicado paralelo entre os casais do presente e do passado em "História do Cerco de Lisboa", a arquitetura exagerada e bela do "Memorial do Convento".
Isso não quer dizer que não será também reavaliado o que veio antes, desde o primeiro romance -"Terra do Pecado", publicado em 1947 e por décadas renegado-, até o "Manual de Pintura e Caligrafia", de 1977, e "Levantado do Chão", de 1980, volume em que pela primeira vez Saramago adota o uso intensivo da vírgula como sinal de pontuação fundamental, uso que se tornou sua marca registrada.
E o que veio depois, alegorias ambiciosas de alcance duvidoso -como "Todos os Nomes", de 1997, e a "A Caverna", de 2000-, exercícios curiosos -como "O Homem Duplicado", de 2002, ou "A Viagem do Elefante", de 2007-, e intervenções bastante forçadas, como "Ensaio sobre a Lucidez", de 2004, e "As Intermitências da Morte", de 2005. Essas serão, porém, tarefas (enigmas) para o futuro.
Hoje, vale a pena lembrar um comentário do professor João Alexandre Barbosa, publicado no caderno Mais!, da Folha, em 1998.
Escreveu ele então que os romances que José Saramago vinha produzindo lhe "conferiam a posição de um dos melhores prosadores de língua portuguesa" do século que ia terminando.
E acrescentou: "E, para dizer a verdade, o plural só está aí pela existência anterior de João Guimarães Rosa". Se o julgamento é exagerado ou não, cabe a cada leitor decidir.
O que importa é que ele atesta a ordem de grandeza de uma obra que foi por tantas décadas construída e que, há poucas horas, chegou ao final.
*ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago" (ed. Globo).

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