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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Dória é filho de um baiano, "João Dolár"

O pai do prefeito de São Paulo, o deputado federal João Doria, detestava, como o filho, ser chamado de “João Dólar”. Mas, ao contrário do Júnior, teve mais savoir-faire e transformou o limão numa limonada: em vez de proibir que o chamassem assim (como fez o prefeito), registrou a alcunha na Justiça Eleitoral da Bahia. Também ao contrário do filho liberal, Doria pai, um nacionalista que foi cassado pela ditadura na semana seguinte ao golpe, não recebeu o epíteto de gente da esquerda e sim da direita anticomunista que tanto combateu como parlamentar.
Em agosto do ano passado, João Doria Jr. recorreu à Justiça e conseguiu que o Facebook excluísse o perfil “João Dólar”, uma sátira ao estilo burguês, coxinha, do então candidato a prefeito. Não satisfeito, Doria pediu multa de 5 mil reais para o criador da página por tê-lo “ofendido”. O que talvez nem o prefeito saiba é que, coincidência das coincidências, o apelido está em sua família há mais de 50 anos. E se disseminou ao ponto de, em 1962, João Agripino da Costa Doria, candidato a deputado federal pela Bahia, pedir ao Tribunal Regional Eleitoral que aceitasse como seus os votos que porventura aparecessem com o nome “João Dólar” nas cédulas eleitorais, na época escritas à mão.
Aliado de João Goulart, Doria pai atribuía a difusão do apelido a parlamentares que se beneficiaram da “generosidade” do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), organização conservadora anticomunista vinculada à CIA que preparou o terreno para o golpe de 1964. Financiado com dinheiro de governos e multinacionais estrangeiras, o Ibad irrigou com milhões de dólares os candidatos de direita e os jornais que aderiram ao movimento em favor do golpe, como O Globo. Um exemplo foi o financiamento do livro O Assalto ao Parlamento, do tcheco Jan Kozak, para alertar do “perigo vermelho” –e que o jornal de Roberto Marinho distribuiu a seus leitores em fascículos.
O deputado federal João Doria seria um dos artífices da CPI que investigou a organização, que acabaria fechada por corrupção por Jango em agosto de 1963. Os cinco parlamentares que estavam à frente da comissão (além de Doria, Rubens Paiva, José Aparecido, Eloy Dutra e Benedito Cerqueira) seriam todos cassados pela ditadura já no AI-1 (Ato Institucional Número 1), em 9 de abril de 1964. Em 1977, o ex-embaixador norte-americano Lincoln Gordon reconheceria o financiamento de parlamentares pelos Estados Unidos.
Doria era tão nacionalista que, em seguida, chegou a propor outra CPI, para investigar as publicações estrangeiras que invadiam o país no período antes do golpe, para proteger a opinião pública “de fatos e conceitos nem sempre condizentes com os legítimos interesses nacionais”. Esta, porém, não deu em nada.
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(O Semanário, 25 a 31/07/1963)
Nascido em Salvador, na Bahia, em 1919, João Agripino da Costa Doria era jornalista e fez carreira como publicitário na Standard, no Rio, antes de se mudar para São Paulo e abrir sua própria agência, a Doria Associados. Em 1960, retornou a seu Estado natal para se candidatar a deputado federal pelo PDC (Partido Democrata Cristão) e conquistou a vaga de suplente. Em 1963, assumiu o cargo de deputado e se incorporou à Frente Parlamentar Nacionalista, de apoio a Jango. Situado à esquerda no PDC, atuava em dobradinha com ninguém menos que Plínio de Arruda Sampaio.
Foi na campanha a deputado que o apelido “João Dólar” surgiu, e se espalhou graças a línguas ferinas como a do falecido coronel da política baiana Antonio Carlos Magalhães. Se ACM Neto é cotado como candidato a vice de Doria numa provável candidatura à presidência, seu avô e o pai do prefeito eram adversários figadais e chegaram a ir às vias de fato em uma sessão da Câmara em que, em seu estilo característico, o Malvadeza o fustigou com a alcunha. Doria sênior precisou ser contido pelos colegas para não dar uns sopapos em ACM, que o acusava de ter se beneficiado de “favores governamentais” no governo Juscelino Kubitschek.
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(Jornal Folha de S.Paulo, 27/02/1964)
Dias depois, uma nota maldosa na coluna Radar Político do jornal Folha de S.Paulo, muito provavelmente tendo ACM como fonte, revelava que o deputado do PDC havia se irritado com o apelido sem razão, já que havia registrado também o nome “João Dólar” ao se candidatar à Câmara Federal.
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(Folha, 07/03/1964)
O próprio João Doria foi à tribuna, dias depois, para explicar a razão pela qual pediu o registro da alcunha, e seu discurso é uma pérola do anedotário político brasileiro, além de espantosamente similar ao percurso do filho. Nele, Doria pai explica não ser verdade que havia feito a campanha mais cara da história do Estado, como diziam seus detratores (daí o apelido) e que havia pago parte dos custos da eleição com recursos próprios –exatamente como fez o tucano Doria em 2014. A fala do pai, inclusive, parece ter sido escrita pelo filho.
“O senhor está fazendo uma consagração dos meus métodos publicitários, porque a publicidade foi baratíssima para os efeitos que causou. Vossa excelência está honrando minha condição de profissional de propaganda”, disse Doria pai, naquela sessão do longínquo ano de 1964, ao ser aparteado pelo deputado João Mendes, um dos acusados de receber dinheiro do Ibad. “Eu levantei os recursos com meu crédito pessoal. Com um total de cinco milhões e com os recursos técnicos da minha empresa, com esta atuação empresária que eu tenho, com meus auxiliares, com meus técnicos de rádio, com meus técnicos de televisão, eu produzi toda a minha campanha.”
O linguajar de marqueteiro profissional talvez seja uma das poucas semelhanças, ideologicamente falando, entre o “Dólar” pai e o filho. Naquele mesmo discurso, João Doria mostra deplorar o apelido por desnudar a intenção de seus adversários de transformá-lo, diante da opinião pública, num entreguista dos interesses nacionais –algo que para João Doria Jr., entusiasta do capital estrangeiro, não teria a menor importância.
“O que significa chamar um parlamentar de João Dólar? Significa que o nobre deputado Antonio Carlos Magalhães quis assim demonstrar que eu era ou teria sido um agente de capitais estrangeiros”, discursa João Doria, com indignação. “O nobre deputado Padre Godinho, com a verve que lhe é habitual, achou que ofensa para mim seria chamar-me João Cruzeiro, moeda desvalorizada, moeda pobre, pois no parecer dele, chamar-me de João Dólar, moeda forte, moeda conversível, moeda respeitada, diante da qual muitos se ajoelham, se curvam e se vendem, não deveria constituir motivo de ofensa para mim. Lamento discordar. O epíteto de João Dólar me foi atirado justamente por parte daqueles que ao dólar se venderam, justamente pelos verdadeiros joão-dólar, alguns dos quais militando, inclusive, na área partidária do nobre deputado Antonio Carlos Magalhães.”
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(Ata da sessão de 03/10/1963)
Segundo João Doria pai, quando percebeu que o apelido já estava disseminado pela Bahia e que corria o risco de perder votos de eleitores menos instruídos que achavam que seu nome era mesmo “João Dólar”, resolveu assumir e pediu o registro da corruptela ao TRE. “Constato, com impressionante frequência, que ponderável número de pessoas nas ruas e nos lares humildes de nossa capital que desejam sufragar minha candidatura, sub-repticiamente influenciados por essa propaganda adversária, já não mais pronunciam meu nome na forma correta e original, mas adotando o apelido infamante na condição de ser este o meu nome verdadeiro”, escreveu, no requerimento ao tribunal.
É fascinante observar as coincidências entre a trajetória do pai no Congresso Nacional pré-golpe com a do filho, só que ao contrário. Enquanto Doria quer se firmar como o candidato anti-Lula e anti-esquerda, seu pai estava ao lado dos esquerdistas, com os nacionalistas; enquanto Doria dá corda para o macarthismo do movimento Escola Sem Partido, seu pai denunciava o macarthismo da tribuna; e enquanto Doria apoia e é apoiado pelo MBL (Movimento Brasil Livre), seu pai atacava as organizações juvenis de direita financiadas pelo Ibad para desestruturar a UNE (União Nacional dos Estudantes).
“Nos meios estudantis, insinuaram-se os agentes da Adep (Ação Democrática Popular, braço do Ibad) para comprar ‘líderes’ universitários a peso de ouro e dividir a classe pela intromissão de entidades espúrias como o Movimento Estudantil Democrático (MED), a Frente da Juventude Democrática e outras associações agitadoras e provocadoras, responsáveis por vários e lamentáveis incidentes nos últimos congressos da UNE”, denunciou João Doria pai em outubro de 1963, em um longo e histórico discurso em que apontava a perseguição aos comunistas no Brasil e o fascismo infiltrado nas Forças Armadas.
“Para esses estrategistas do anti-comunismo, saudosistas de Hitler e Mussolini, o combate à ideologia marxista reclama o emprego de métodos totalitários opostos, mas equivalentes. São os síndicos da liberdade, os falencistas da democracia, os pioneiros do terror ideológico do macarthismo e do neofascismo no Brasil. Arautos da enganosa teoria do mal necessário: ressuscitar os inimigos mortais de ontem para derrotar os mortais inimigos de hoje”, disse o Doria do passado, como se estivesse falando do Brasil atual. João Dólar, ops, Doria, deveria olhar mais para a história política do seu pai.

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