Jantei com Costa Gavras, meu amigo. Discutimos esta situação: não é só um mundo que acabou. É tudo o que foi a vida e o objetivo de luta de milhões de pessoas. É gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa que – de repente – se acaba. A pergunta que você pode me fazer agora é a seguinte: é o socialismo que não presta ou é a falsificação do socialismo?
O que é que acontece nestes países?
Já não são regimes socialistas nem a Polônia nem a Hungria nem a Tchecoslováquia nem a Alemanha oriental. Já estão deixando de ser socialistas a Bulgária, a Romênia e até a Albânia!
Mas não acredito que o socialismo, como ideia, deixe de ser o que representa como avanço e como um passo adiante.
Nunca houve socialismo, como não houve democracia. Como a implantação dos regimes socialistas foi baseada naquilo que é fundamentalmente errado – a ditadura de classe – , houve, então, uma falsificação total e completa!
O mundo era um antes da revolução de outubro, na Rússia. Passou, depois, a ser outro. Estados ditos socialistas – mas que não eram, na realidade – podem deixar de existir. Isso não quer dizer, no entanto, que os valores novos trazidos pela Revolução de outubro – como uma consciência coletiva maior e fraternal – não persistam. Persistem.
O que acontece é que o mundo não será mesmo igual. Já não é.
O capitalismo de hoje também já não é o mesmo de antes. Não sou sociólogo. Eu via sempre, na televisão, no Brasil, que todo dia apareciam dois, três cientistas políticos. É cientista político pra burro. É uma quantidade imensa. São formidáveis.
Não sou cientista político – infelizmente – nem crítico literário. Mas vem à minha casa gente que lutou toda a vida. De repente, um mundo vem abaixo!
Durante o encontro com Costa Gavras, eu disse que – de repente – estou me dando conta da importância da televisão. Via na TV as imagens do muro de Berlim. Vi o homem parando os tanques na China. E as imagens do ditador da Romênia? Reuniu duzentas mil pessoas para aplaudi-lo, mas, de repente, a multidão começa a vaiá-lo.
A imagem do ditador na tribuna é inesquecível. Outra imagem: uma imensa estátua de Lênin com uma corda no pescoço. E o pessoal puxando para derrubá-la.
Devo dizer a você que aquilo me picou o coração. É todo um mundo que vem se acabando – e desabando em cima da cabeça da gente.
É terrível para algumas pessoas – que devem se sentir suicidas, sem ter o que fazer da vida. Não sou sociólogo, mas sem democracia não se pode construir o socialismo.
O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países.
Sem considerar o indivíduo como ser humano, você não pode pensar em socialismo”.
Geneton Moraes Neto: A denúncia do stalinismo provocou um choque ainda maior no senhor?
Jorge Amado: “O choque veio já antes da denúncia, porque eu vinha sabendo das coisas. Mas é evidente que a denúncia de Kruschev trouxe coisas de que eu não fazia a mínima ideia”.
GMN: Mikail Gorbachev é o ídolo de Jorge Amado hoje?
Jorge Amado: “Meu último ídolo chama-se Stálin. Já não tenho ídolos – há tempos. Como ídolo, Stalin é o bastante. É suficiente… Gorbachev é um grande estadista do nosso tempo. Todos nós devemos a ele um fato importante: o perigo de uma guerra atômica – que iria acabar com a vida sobre a Terra – diminuiu muito. O que é que Gorbachev faz? O que ele faz é expor a verdade. Havia uma mentira imensa que dizia: “O socialismo é este”. De repente, a gente viu que não era. Outra imagem de TV que me impressionou foi transmitida durante a comemoração do aniversário da Revolução de outubro. Durante uma manifestação de cento e ciquenta mil pessoas em Moscou, dois cartazes me marcaram muito. Um dizia: “Setenta anos para chegar a nada”. E outro: “Proletários de todo o mundo, perdoai-nos”. São dois negócios terríveis”.
GMN: O senhor diz que o mundo de tantas pessoas que deram a vida toda a estes ideais desabou diante desses mudanças todas. Seu mundo desabou, politicamente?
Jorge Amado: “Eu já vinha dizendo que, sem democracia, não se pode construir o socialismo. O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países. Sem considerar o indivíduo ser humano não se pode pensar em socialismo. O que vai existir é, sempre, uma falsificação. São coisas que, para mim, ficaram claras, dentro de um processo sofrido, longo e cruel”.
GMN: O livro Os Dentes do Dragão traz o registro do atrito que houve entre o senhor e Oswald de Andrade, na época em que ambos militavam no Partido Comunista. Oswald de Andrade escreveu: “Numa reunião do comitê de escritores, diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo. Em 1940, Jorge convidou-se no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Recusei e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas desse gênero do mesmo alemão”. Houve uma briga séria?
Jorge Amado: “Houve, realmente, um atrito. Oswald – de quem eu era amigo – desejava ser candidato a deputado na chapa do Partido Comunista. Não foi. Não sei porque – talvez porque outras pessoas tivesse feito intriga – Oswald achou que eu tinha concorrido para que ele não entrasse na chapa. O que aconteceu, na verdade, foi o contrário. Eu lutei – e muito – para que ele entrasse na chapa do partido. Não consegui. Oswaldo não entrou. Atribuiu a mim este fato, o que fez com se afastasse de mim. Depois, voltamos às boas – ele, infelizmente, já enfermo. Não sei se Oswald pediu a minha exclusão do partido. Não vale a pena falar sobre este assunto”.
GMN: Mas ele pediu a exclusão do senhor do Partido Comunista?
Jorge Amado: “Isso, se houve, não sei”.
GMN :Oswald de Andrade cita também o encontro que teve com o senhor e com um alemão na embaixada. O senhor se lembra?
Jorge Amado: “Não”.
GMN : Ao se referir ao ato de escrever, o senhor já disse: “Quanto à escrita propriamente dita, aceito palpite”. O senhor aceita palpite de quem?
Jorge Amado: “Quem palpita é Zélia (Gattai), porque vive ao meu lado. Sou mau datilógrafo. Só escrevo com dois dedos. Emendo muito. Hoje, escrevo e reescrevo. Quando jovem, emendava pouco. A gente vai perdendo aquele elan da juventude e vai ganhando experiência. A escrita, então, passa a ser sempre difícil. Você escreve e reescreve. Depois, quando parece que o texto ficou do meu agrado, Zélia bate à máquina uma cópia que ainda vou ler e reler. É aí que ela dá palpite. A partir de certo momento do livro, dou a ler a meu irmão James Amado, uma opinião que levo em conta. E ele lê – e palpita”.
GMN :Não é uma contradição o mais famoso escritor brasileiro dizer que escreve “mal” , como o senhor diz?
Jorge Amado: “Para começar, sou contra este tipo de qualificativo – “o mais”, “o maior”. É difícil dizer quem é “o mais”, “o maior”, “o melhor”. Há os que são bons. Outros são ótimos. Não sou uma pessoa que se considere isso ou aquilo. Não sei que adjetivo usar, mas sou bastante modesto, humilde e crítico a meu respeito. Há uma pergunta que – adiante – você já não me fará. É esta: “E o Prêmio Nobel? Você não acha que vai ganhar?”. Por que eu haveria de ter? Nunca esperei. Desejar é outra coisa. Aspirar é outra coisa. Aliás, nunca aspirei a prêmio nenhum. Nunca lutei por nenhum prêmio. Nunca fui candidato. Quem deve ganhar os prêmios é o livro, não o autor. Uma das coisas mais tristes da vida literária é ver um sujeito cavando um prêmio. É um horror. Quando me dão, fico satisfeito. Eu me admiro por que é que haveria de ganhar o Prêmio Nobel. É um prêmio para grandes, grandes escritores. Não me considero como tal”.
GMN: O senhor acha que escreve mal de verdade?
Jorge Amado: “Eu escrevo muito mal”.
GMN: Que reparos, então, o senhor faz a seus textos?
Jorge Amado: “A crítica faz tantos reparos… Não sou um escritor que trabalha. Um crítico francês chamado Jean Rocha escreveu todo um livro sobre mim. Disse que escrevo bem. Não ouso fazer tal afirmação. Porque há os que dizem que não existe quem escreva pior do que eu. Sou um escritor que nunca teve a unanimidade da crítica. O País do Carnaval foi o meu único livro unanimemente elogiado. Eu era um menino… (N: Quando terminou de escrever o livro, Jorge Amado tinha 18 anos). Desde então, tenho levado pau. Nunca nenhum outro livro meu, a partir de então, recolheu unanimidade. A crítica sempre foi polêmica em torno do meu trabalho. Também sou uma negação como contista. O que aparece como conto meu por aí é sobra de romance, coisas que não foram adiante ou que não usei”.
GMN: Escrever, para o senhor, é uma necessidade física? Em algum momento, o senhor já admitiu a possibilidade de deixar de escrever?
Jorge Amado: “Sempre penso, com grande desejo, em não fazer nada. Minha tendência é vagabundar, andar, ver pessoas e coisas, ler livros. Mas sempre o livro se impõe a mim. Já há algum tempo, estou resistindo a ir para a máquina de escrever, pela terceira vez, para tentar escrever um livro chamado Bóris, o Vermelho. Em 1984, minha filha morava no Maranhão. Viajei até lá para, um pouco escondido, tentar escrever Bóris. Acabei começando um livro chamado Tocaia Grande, concluído dois anos depois. O livro foi escrito em várias casas no Brasil. Fiquei fugindo de uma para outra- só que me descobriam. Vim em 1987 para Paris, para tentar escrever Bóris. Mas escrevi O Sumiço da Santa, porque descobri que nunca tinha feito um livro sobre sincretismo cultural e religioso, algo que é presente na maioria dos meus romances, mas nunca como tema central. Não pude escrever Bóris porque a estrutura da narrativa não estava suficientemente madura na minha cabeça.
Vou ter de explicar a você a minha forma de trabalhar: quando tenho a ideia de um livro, trato de amadurecê-la na cabeça, antes de ir para a máquina – mas não no sentido do que seria a história do livro. Não sei contar uma história. Minha mulher senta com os netos e conta uma história que eu mesmo ouço com imenso prazer. Zélia inventa. Já eu sou incapaz. O enredo – ou a história dos meus livros – decorre dos personagens. Porque os personagens é que os fazem. Nunca sei, hoje, o que vai acontecer no dia de amanhã com a história. Os personagens é que vão construindo a história aos poucos. Um personagem que coloco ali, por uma necessidade técnica, por um detalhe, de repente vive e cresce. A história decorre dos personagens. É uma coisa vivida, em vez de ser inventada. Nunca penso em termos de história. Penso, sim, em figuras, em ambientes e em como será a arquitetura da narrativa. Busco encontrar o começo. Porque o começo do livro é que é difícil – exatamente porque não sei contar uma história. Não tenho a invenção da história. É difícil. Preciso que os personagens comecem a ficar de pé – e a andar com seus pés, para que a história também ande. Duas vezes pensei que Bóris estivesse maduro. Quando fui para a máquina, vi que não era o que queria.
O que quero fazer, no livro, é o perfil de um jovem brasileiro entre 18 e 20 anos na década de 70. É apenas um jovem. Mas as circunstâncias da vida política brasileira na época – uma ditadura militar, com tudo o que ela representava – levam a que ele desempenhe um determinado papel que não sei exatamente qual é. Isso virá. Não me amedronto, porque, quando escrevo, a história sempre vem”.
GMN: O senhor terminou de escrever o romance de estreia, O País do Carnaval, há exatamente 60 anos, em 1930. Tempos depois, chamou o livro de “um caderno de aprendiz”. Qual é o principal reparo que o Jorge Amado de 78 anos faz, hoje, ao Jorge Amado de 18 anos, como romancista?
Jorge Amado: “O País do Carnaval e Cacau e Suor são cadernos de um aprendiz de romancista. O principal reparo que faço – sobretudo a O País do Carnaval – é que é um romance com bastante influência europeia. Sobre o romance pesa – e muito – uma visão europeia do Brasil. Eu era um menino influenciado, de um lado, pela leitura de uma literatura europeia, e, de outro, pelo Modernismo – que, apesar cultivar uma brasilidade e um lado nacionalista na Antropofagia, também tinha influência europeia, sobretudo da França e da Itália. As primeiras obras de Oswald de Andrade, como Os Condenados, são bastante influenciadas por D`Annunzio. O meu é um livro europeizante – de certa maneira”.
GMN: Curiosamente, o personagem principal do livro chega da Europa e volta para lá…
Jorge Amado: “O personagem passa pelo Brasil. A tradução francesa de O País do Carnaval só foi feita agora pela Editora Gallimard, sessenta anos depois da publicação. Nunca permiti a tradução de O País do Carnaval até há poucos anos. Quando completei setenta e cinco anos, um dos meus editores italianos fez uma tradução do livro – na verdade, uma edição especial, quase universitária, com estudos. Era uma homenagem aos setenta e cinco anos, fora das coleções normais. Não pude impedir a tradução. A partir daí é que a Gallimard comprou os direitos da tradução em francês. São as duas únicas línguas em que foi traduzido. Com a tradução francesa, recebi, há poucos dias, um telefonema de uma editora dos Estados Unidos que quer comprar O País do Carnaval. Não decidi ainda se aceitarei ou não”.
GMN: Por que o senhor – que conheceu grandes figuras da literatura e da política do mundo inteiro – nunca se animou a escrever uma autobiografia?
Jorge Amado: “Prefiro escrever romance. Enquanto eu puder trabalhar numa obra de criação, acho preferível. Quando sentir que já não posso, quem sabe eu me volte para uma autobiografia. Mas não é algo que me tente”.
GMN: O senhor não dá importância a depoimentos históricos de escritores?
Jorge Amado: “Gosto de ler biografias e memórias – com prazer. Não incluo nos meus projetos, por ora, escrever minha autobiografia. Mas quem sabe?”.
GMN : Nélson Rodrigues disse que, se algum dia alguém fosse escrever um verbete sobre ele, bastaria redigir uma frase : “Nélson Rodrigues – também conhecido como flor da obsessão”. Se o senhor fosse escrever um verbete sobre Jorge Amado, quais palavras usaria? Como é que o senhor gostaria de ser lembrado daqui a 50 anos numa enciclopédia?
Jorge Amado : “Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens – às vezes, também com as mulheres”.
* (Entrevista gravada em 1990)
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