João Carlos Rodrigues*
Esse não é o primeiro filme a focalizar o polêmico baiano ex-deputado comunista que já foi tema de três documentários (2001, 2005 e 2012) e personagem de ficção em “Batismo de sangue” (2006) de Helvécio Ratton, que aborda o episódio dos dominicanos.
Marighela foi um personagem bigger than life: embora comunista ortodoxo era também baiano, ou seja, chegado à boemia, ao samba, à poesia e ao sexo. Por ter aderido à guerrilha foi desligado do Partido Comunista Brasileiro (PCB, o popular Partidão) e acabou morto numa emboscada da polícia em São Paulo em 1969 durante a ditadura militar. Para a extrema esquerda foi um mártir. Para a extrema direita um inimigo público. Em suma, temos bom material para o cinema.
O filme de Wagner Moura tem qualidades e defeitos.
Comecemos pelas primeiras.
Merece elogio a estrutura do roteiro, principalmente a primeira parte, onde é muito bem delineado o perfil do personagem, ainda mais enriquecido pela excelente interpretação do protagonista. Marighela é um ser humano e não um herói sem defeitos tipo realismo socialista soviético. É também muito feliz o contraponto de sua vida perigosa com o relacionamento afetivo com o filho, que também é um personagem de carne e osso e não um fantoche dos roteiristas. Todas as contradições estão presentes e adequadamente apresentadas sem maior maniqueísmo.
O elenco e a direção, assim como a fotografia e a produção em geral também contribuem muito para a excelência de “Marighela” enquanto filme comercial de ação, outra de suas qualidades.
Um dos lados fracos está que o lado antagonista não é tão bem delineado quando o dos terroristas. O policial Lúcio é raso, exagerado, previsível e o intérprete se esforça muito apesar de lhe faltar o physique du rôle, mas não pode fazer milagres. Claro que o filme, simpatizante dos guerrilheiros, não poderia suavizar o papel dos torturadores, mas esse lado sem dúvida mereceu menos atenção do roteiro.
Creio também que uma montagem mais atenta eliminaria certas sequências paralelas ao desenvolvimento da trama central e diminuiria a duração das cenas de tortura e espancamento, reduzindo um pouco a duração (2 horas e 34 minutos) e aumentando suas possibilidades comerciais. Como parece que será exibido também como minisérie da TV Globo essas cenas talvez se justfiquem. Mas o filme é o que está aí e como tal deve ser comentado.
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Chegamos aos momentos em que, principalmente na segunda parte, o roteiro e a direção incluem opiniões a meu ver equivocadas que quase (eu disse quase) botam a perder o resultado final.
Vamos lá. Carlos Marighela era filho de um italiano com uma preta e, portanto, não podia ser escuro como Seu Jorge. (Eu o vi pessoalmente quando criança e era mulato mais pro claro, como Nelson Xavier ou Marku Ribas o ator que o interpretou no filme de Ratton). Escrevi acima e aqui repito que sua interpretação é excelente – merece os prêmios que recebeu e outros mais - mas creio que seu tipo étnico é manipulado para fazer paralelos entre a luta de guerrilhas de 1968 e a luta contra o racismo de hoje. Digo mesmo há nas entrelinhas incentivos a uma insurreição negra nos dias atuais. Nada mais irresponsável e fora da realidade.
Marighela, um marxista-leninista que achava como Marx a religião o ópio do povo beijar guia de Oxóssi é um pouco demais. Também o papo furado que Jesus era negro quando era um judeu palestino. Os partidos comunistas do mundo inteiro sempre recusaram aceitar a luta racial como legítima, achavam um desvio da verdadeira luta, a luta de classes. Esses três escorregões quase põem tudo a perder.
O cineasta diz que não pretende fazer apologia da guerrilha, mas essa sensação é a que fica. A cena dos guerrilheiros cantando o Hino Nacional depois dos créditos finais, com a voz embargada pelo rancor, mostra que sim. “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” escreveu Lênine. Comparar a terrível repressão política da ditadura Médici ao governo incompetente de Bolsonaro me parece um exagero mercadológico e uma imaturidade política.
Mesmo assim “Marighela” é um filme que merece ser visto e caso receba alguma represália durante sua carreira nas salas de cinema ofereço antecipadamente minha solidariedade incondicional. Afinal, dizia Rosa Luxemburgo, “a Liberdade é a liberdade dos que divergem de nós”. Que seja proibido proibir. Boa sorte ao diretor Wagner Moura, equipe e produtores.
*Crítico de Cinema
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