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segunda-feira, 14 de março de 2022
A barricada
WALDOMIRO J SILVA FILHO*
"E não havia resposta para nenhuma dessas perguntas, a não ser uma resposta sem lógica…”
Liev Tolstoi, Guerra e Paz
O escritor brasileiro Itamar Vieira Jr. publicou um artigo na Folha de S.Paulo no dia 05 de março de 2022 sobre a tragédia de Petrópolis – mais uma vez a lama carrega consigo vidas que não cabem nas estatísticas da desgraça. Sem tratar especificamente dos números e do tamanho monstruoso do desastre, Itamar escreve que lhe “interessa a escala do humano, dos seres, de como pessoas, como eu e você, atravessam os eventos”; ele escreve o artigo para “acessar a tragédia pela escala do humano”.
Como escritor, de fato, a “escala do humano” é a medida de Itamar. Para mim, me parece que esta é uma das grandes lições que a literatura pode nos oferecer: ver a História, o progresso, o tempo, Deus, a guerra na medida do humano, demasiado humano.
2. Enquanto os jornais e a internet estão se afogando com as imagens de prédios destruídos, ruas desfiguradas, multidões de fugitivos da calamidade na Ucrânia e especialistas fazem cálculos dos prejuízos para a economia global, o fotógrafo Lev Schevchenko capturou com sua lente uma cena que está fadada a desaparecer e se eternizar: uma janela de vidro e, no interior de um apartamento de um edifício de classe média de Kiev, ergue-se uma barricada… de livros. São, seguramente, centenas de livros empilhados com cuidado e método. Na posição que estão não vemos os títulos, mas pelo formato dos livros, pela diversidade de tamanho e espessura, posso imaginar que ali estão livros de Literatura, História, Ciências, Arte, Direito… não são enciclopédias ou metros de livros técnicos.
A proprietária (pode ser um proprietário) teve a delicadeza de deixar as lombadas dos livros, com seus preciosos títulos das suas autoras e autores favoritos, voltados para dentro do apartamento, no alcance da sua visão. Quando olha para a sua barricada, a leitora sitiada, segurando uma xícara de chá, lembra dos dias que teve o peso de cada um daqueles livros nas suas mãos, consegue rememorar o cheiro do papel e, sobretudo, o espanto das palavras que saltavam das páginas para a sua alma inquieta. Com alguns livros, ela riu, com outros refletiu, imaginou, descobriu, viajou, se indignou, conheceu, se perdeu, se achou, lembrou, aprendeu.
Certamente a Ucrânia tem escritoras e escritores brilhantes, como Lina Kostenko, Oksana Zabuzko, Yurii Anchukhovyck, Pavel Zagrebelny. Mas também é certo que haverá na barricada autoras francesas, alemãs, norte-americanas, colombianas e russas. Pela espessura e tamanho de um dos livros da primeira pilha, concluo que é uma edição de Orgulho e preconceito, um outro, na mesma pilha, deve ser O idiota e, ao lado, Cem anos de solidão, A casa dos espíritos, O olho mais azul.
Barricadas são assim, reunimos o que está ao alcance, tenha peso, conote resistência e não perguntamos a origem daquilo que guarda nossa vida, nossa alma. Toda ajuda e amparo é bem-vindo.
A proprietária, a leitora, é uma mulher que há pouco completou 49 anos, é uma pessoa alegre e comunicativa, gosta de viajar, aprecia jazz e bossa nova, a despeito da dor que carrega no peito. Ela já viu a calamidade se aproximar antes, já ouviu bombas, presenciou gritos de ódio, ela já pensou demoradamente sobre o assunto quando lia alguns dos tijolos da sua barricada, Herta Müller, Elias Canetti, Svetlana Alekiévitch. E ela se perturbava e se confortava com o que ia conhecendo sobre tragicomédia humana. Hoje, novamente, ela é um pêndulo entre a angústia e a esperança de que uma palavra possa impedir o avanço do horror.
Uma barricada de livros, de “papéis pintados de tinta”, pode, no limite, conter os estilhaços de vidro resultantes do violento deslocamento de ar que arrebenta a frágil janela – uma bomba explodiria nas imediações. Essa barricada não deterá as balas de fuzis ShAK-12, DXL-3 e Na-94, muito menos projéteis de blindados T-72BM, T-80U e T-90A. E as bombas? E os mísseis? Enquanto tenta impedir o avanço do horror, a destruição de tudo, essa barricada não pode parar as balas.
Não dá para saber se nossa engenheira de barricadas sobreviverá a esta guerra, não dá para garantir que os livros que erguem o muro um dia poderão ser lidos novamente. Provavelmente, não. A guerra não cessará porque ela leu Primo Levi e agora conhece melhor a alma humana, nem em virtude do apelo à dignidade e à beleza. A simples existência da guerra, desta guerra, pois sempre se trata de uma guerra particular, já é uma demonstração eloquente do fracasso das barricadas que antecederam esta barricada, o retumbante malogro da literatura, da filosofia, de Tolstoi e Musil. No limite, a barricada mostra a medida do humano no meio da tragédia, lembra do ponto de vista daqueles que se rastejam sob as balas que cortam o ar, dos prisioneiros das tiranias, do abismo, do imenso abismo, da loucura do progresso, aponta para o pai, a mãe e seus dois filhos que apreciam tudo estirados na calçada, olhos petrificados, lábios vazios, as poucas coisas que conseguiram pegar às pressas jogadas ao lado.
A barricada, esta barricada é um misto do heroico e do patético: uma obra prima do não familiar, do que é impossível de ser encaixado no cenário e nas narrativas da guerra. Parece um erro, uma “falha”, algo “fora do lugar”. A barricada singular e irreproduzível, a barricada que permanece apenas na fotografia, a barricada de uma leitora singular e anônima é a recusa de dar sentido e justificativa à tragédia no exato momento que a tragédia devora, devora, devora.
Uma mulher empilhando seus livros, um professor em um país estrangeiro escrevendo sobre uma guerra, essa é a própria imagem da melancolia… Nem a barricada nem este texto alterarão o curso da desgraça. Este texto tem um pouco mais de 6.000 caracteres. E se tivesse 100 bilhões? E seu eu fosse Dostoiévski? Ou Toni Morrison? Ainda assim, a bala fará seu trajeto, cortará as páginas dos livros como se fossem só papel e atingirá o único alvo que ela busca, o alvo para a qual todas as balas foram fabricadas, uma vida. E outra bala a seguirá.
Pensei na ideia de Itamar, “acessar a tragédia pela escala do humano”, tentei chegar mais perto, fui até bem próximo da janela. Fui lá e agora, de volta, não tenho nada, só uma história para contar: há uma barricada de livros.
Colônia, 11 de março de 2022.
*Waldomiro J. Silva Filho é professor titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. Atualmente é Pesquisador Visitante do Center for Contemporary Epistemology and the Kantian Tradition da Universidade de Colônia, Alemanha
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