quarta-feira, 13 de março de 2024

Dias Perfeitos



Paulo Villaça*
Com meia dúzia de gestos, Hirayama dobra o cobertor, o colchonete e os guarda ao lado do travesseiro em um dos cantos de seu pequeno quarto. Depois de escovar os dentes na pia da cozinha e aparar o bigode usando o espelho que equilibrou acima desta, ele molha seus vasinhos de planta, veste o uniforme do trabalho, recolhe o celular, a carteira, o relógio e outros objetos que já se encontram alinhados sobre uma microprateleira ao pé da escada, compra um café em lata na máquina situada diante de casa e entra em sua van para iniciar mais um dia limpando os banheiros públicos de Tóquio. Executada por Kôji Yakusho com a economia de quem parece repetir aquela rotina há anos, a sequência é rodada por Wim Wenders e montada por Toni Froschhammer com a precisão de um relógio – e a partir dali, qualquer mínimo desvio dos gestos do protagonista ou mesmo dos enquadramentos de Wenders se tornarão tão impactantes quanto a explosão de uma bomba em um filme de ação. Mas quem é aquele homem e por que sua vida deveria ser a base de um longa-metragem de duas horas de duração? Seu trabalho é uma fachada para atividades obscuras? Ele possui algum grande segredo que levará a uma reviravolta ao fim do segundo ato? Ele se envolverá em um acidente ou em algum evento que o levará a revelar habilidades há muito abandonadas? 

Não. Ele é exatamente o que aparenta ser: um homem solitário com um emprego comum levando uma vida anônima. Escrito por Wenders ao lado de Takuma Takasaki, o roteiro de Dias Perfeitos não se preocupa com uma “trama”, com incidentes absurdos ou diálogos frequentes, permitindo que a narrativa seja construída através da observação do cotidiano de Hirayama e de seus gestos e olhares, apresentando-se como um estudo de personagem por excelência.


Exalando uma paz interior notável, Hirayama é um destes personagens que se tornam tão reais em sua complexidade e tão emblemáticos graças a uma performance sem um único instante de artificialidade que, desconfio, a imagem de seu figurino de trabalho – um macacão azul com uma toalha branca enrolada no pescoço – se tornará tão reconhecível para os cinéfilos quanto o terno e gravata pretos acompanhados de óculos escuros de Marcello Mastroianni em Fellini 8 ½ ou o vestido, colar de pérolas, tiara e piteira de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo. Quase sempre em silêncio, o sujeito executa suas tarefas com a dignidade de alguém seguro do valor do que faz ainda que muitos tendam a enxergar sua profissão com preconceito e até repugnância (como a mãe que, em vez de se mostrar grata por Hirayama ter encontrado seu filho pequeno, tem o impulso imediato de passar um pano com álcool nas mãos do menino).


Não que Dias Perfeitos sugira que o protagonista gosta do que faz (ou não); para ele, aquele é um ganha-pão que lhe permite atravessar a cidade e observar as pessoas – e se executa seu ofício com diligência, é porque jamais lhe ocorreria ser negligente com qualquer trabalho que tenha se disponibilizado a realizar. (Aliás, os designs dos banheiros de Tóquio representam uma atração à parte.)

Aproveitando cada momento de pausa – como ao esperar que alguém termine de usar o sanitário – para apreciar o céu, as árvores, as sombras, os reflexos e as cores do mundo ao seu redor, Hirayama não é composto por Yakusho como um misantropo; ao contrário, seu olhar geralmente gentil sugere um encantamento pelo comportamento alheio e pelos pequenos ou grandes dramas e alegrias que testemunha em seu dia a dia (e a partida de jogo da velha que disputa com um desconhecido através de um papel escondido em um dos banheiros comprova sua disposição em interagir de algum modo com outras pessoas). Além disso, esta generosidade é direcionada também à natureza não só através das plantinhas que cultiva (e que resgata), mas também das fotos que tira e arquiva com o mesmo cuidado com que faz todo o resto.


Então por que tamanha solidão? Por que viver de um modo tão espartano, usando banheiros públicos para se banhar e fazendo as refeições sempre no mesmo restaurante localizado no acesso subterrâneo ao metrô, alterando este hábito apenas no domingo? (O que não deixa de ser outro hábito.) Por que levar uma vida tão rotineira que até seus sonhos parecem se limitar na maior parte do tempo ao que viu ao longo do dia? Quando sua sobrinha aparece sem aviso, ele se mostra preocupado, mas acessível – mas também ansioso para retornar à rotina. E mesmo que a sugestão de um passado traumático surja em certo ponto, ele não demonstra rancor ou resistência à mesma irmã com a qual deixou de ter contato há anos.

Pois a verdade é que, por mais que o estilo de vida de Hirayama possa soar como um mistério a ser solucionado pelos espectadores que não concebem a possibilidade de que não haja nada a solucionar, ele é perfeitamente feliz – ou no mínimo contente – com o que tem, dedicando-se à leitura todas as noites antes de dormir e ouvindo as músicas em suas fitas cassete cujo valor ele mensura através dos sentimentos que despertam, não de sua raridade. Hirayama não precisa aceitar a vida que tem; ele a escolheu e se mantém em paz com a decisão.


Algo que o plano final desta obra-prima salienta ao ilustrar como a felicidade não preclude a tristeza ocasional e que ter a capacidade de se emocionar com as pequenas coisas – até com o nada – é uma virtude, não um problema.


*Pablo Villaça, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. 



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