Observatório do Cotidiano

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domingo, 14 de setembro de 2025

A democracia e a soberania brasileiras são inegociáveis

Luiz Inácio Lula da Silva*

Decidi escrever este ensaio para estabelecer um diálogo aberto e franco com o presidente dos Estados Unidos. Ao longo de décadas de negociação, primeiro como líder sindical e depois como presidente, aprendi a ouvir todos os lados e a levar em conta todos os interesses em jogo. Por isso, examinei cuidadosamente os argumentos apresentados pelo governo Trump para impor uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. A recuperação dos empregos americanos e a reindustrialização são motivações legítimas. Quando, no passado, os Estados Unidos levantaram a bandeira do neoliberalismo, o Brasil alertou para seus efeitos nocivos. Ver a Casa Branca finalmente reconhecer os limites do chamado Consenso de Washington, uma prescrição política de proteção social mínima, liberalização comercial irrestrita e desregulamentação generalizada, dominante desde a década de 1990, justificou a posição brasileira. Mas recorrer a ações unilaterais contra Estados individuais é prescrever o remédio errado. O multilateralismo oferece soluções mais justas e equilibradas. O aumento tarifário imposto ao Brasil neste verão não é apenas equivocado, mas também ilógico. Os Estados Unidos não têm déficit comercial com o nosso país, nem estão sujeitos a tarifas elevadas. Nos últimos 15 anos, acumularam um superávit de US$ 410 bilhões no comércio bilateral de bens e serviços. Quase 75% das exportações dos EUA para o Brasil entram isentas de impostos. Pelos nossos cálculos, a tarifa média efetiva sobre produtos americanos é de apenas 2,7%. Oito dos 10 principais itens têm tarifa zero, incluindo petróleo, aeronaves, gás natural e carvão. A falta de justificativa econômica por trás dessas medidas deixa claro que a motivação da Casa Branca é política. O vice-secretário de Estado, Christopher Landau, teria dito isso no início deste mês a um grupo de líderes empresariais brasileiros que trabalhavam para abrir canais de negociação. O governo americano está usando tarifas e a Lei Magnitsky para buscar impunidade para o ex-presidente Jair Bolsonaro, que orquestrou uma tentativa fracassada de golpe em 8 de janeiro de 2023, em um esforço para subverter a vontade popular expressa nas urnas. Tenho orgulho do Supremo Tribunal Federal (STF) por sua decisão histórica na quinta-feira, que salvaguarda nossas instituições e o Estado Democrático de Direito. Não se tratou de uma "caça às bruxas". A decisão foi resultado de procedimentos conduzidos em conformidade com a Constituição Brasileira de 1988, promulgada após duas décadas de luta contra uma ditadura militar. A decisão foi resultado de meses de investigações que revelaram planos para assassinar a mim, ao vice-presidente e a um ministro do STF. As autoridades também descobriram um projeto de decreto que teria efetivamente anulado os resultados das eleições de 2022. O governo Trump acusou ainda o sistema judiciário brasileiro de perseguir e censurar empresas de tecnologia americanas. Essas alegações são falsas. Todas as plataformas digitais, nacionais ou estrangeiras, estão sujeitas às mesmas leis no Brasil. É desonesto chamar regulamentação de censura, especialmente quando o que está em jogo é a proteção de nossas famílias contra fraudes, desinformação e discurso de ódio. A internet não pode ser uma terra de ilegalidade, onde pedófilos e abusadores têm liberdade para atacar nossas crianças e adolescentes. Igualmente infundadas são as alegações do governo sobre práticas desleais do Brasil no comércio digital e nos serviços de pagamento eletrônico, bem como sua suposta falha em aplicar as leis ambientais. Ao contrário de ser injusto com os operadores financeiros dos EUA, o sistema de pagamento digital brasileiro, conhecido como PIX, possibilitou a inclusão financeira de milhões de cidadãos e empresas. Não podemos ser penalizados por criar um mecanismo rápido, gratuito e seguro que facilita as transações e estimula a economia. Nos últimos dois anos, reduzimos a taxa de desmatamento na Amazônia pela metade. Só em 2024, a polícia brasileira apreendeu centenas de milhões de dólares em ativos usados em crimes ambientais. Mas a Amazônia ainda estará em perigo se outros países não fizerem a sua parte na redução das emissões de gases de efeito estufa. O aumento das temperaturas globais pode transformar a floresta tropical em uma savana, interrompendo os padrões de precipitação em todo o hemisfério, incluindo o Centro-Oeste americano. Quando os Estados Unidos viram as costas para uma relação de mais de 200 anos, como a que mantêm com o Brasil, todos perdem. Não há diferenças ideológicas que impeçam dois governos de trabalharem juntos em áreas nas quais têm objetivos comuns. Presidente Trump, continuamos abertos a negociar qualquer coisa que possa trazer benefícios mútuos. Mas a democracia e a soberania do Brasil não estão em pauta. Em seu primeiro discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2017, o senhor afirmou que “nações fortes e soberanas permitem que países diversos, com valores, culturas e sonhos diferentes, não apenas coexistam, mas trabalhem lado a lado com base no respeito mútuo”. É assim que vejo a relação entre o Brasil e os Estados Unidos: duas grandes nações capazes de se respeitarem mutuamente e cooperarem para o bem de brasileiros e americanos.

*New York Times, 14/09/25

**Luiz Inácio Lula da Silva é o presidente do Brasil.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Triste Bahia


 “Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado
   Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
   Rico te vejo eu, já tu a mim abundante.”
Gregório de Matos

Osvaldo Campos Magalhães 

Nesse dia 4 de setembro, no ano de 1927, nascia em Salvador, Antônio Carlos Magalhães. Seu pai, Francisco Peixoto de Magalhães Neto, em 1933, foi eleito deputado à Assembléia Constituinte da Bahia pelo PSD (Partido Social Democrático), e no ano seguinte deputado federal, até que, em novembro de 1937, o advento do Estado Novo suprimiu todos os órgãos legislativos do país e pôs fim a sua carreira política. Quando estudante no Colégio Central da Bahia, Antônio Carlos participou da política estudantil. Estudou na primeira escola de medicina do Brasil, onde presidiu o DCE, Diretório Central dos Estudantes. Ao contrário do irmão Zezitop Magalhães, nunca exerceu a profissão. Optou pelo jornalismo, trabalhando no Diário de Notícias, liderado pelo poeta e amigo Odorico Tavares. O jornal pertencia ao grupo Diários e Emissoras Assosciados, do jornalista e empresário Assis Chateaubriand.

Aproximou-se do governador Antônio Balbino e do reitor Edgar Santos, introduzindo-se na política partidária. Apoiou o golpe militar de 1964, aproximando-se do chefe da casa civil do governo Castelo Branco, Luiz Viana Filho, que depois o nomearia para o cargo de prefeito da cidade de Salvador. Realizou uma boa gestão, credenciando-se para ser indicado pelos militares golpistas ao cargo de Governador do Estado da Bahia. O resto é história. Para uns, era conhecido como Toninho Ternura, e dominou a política baiana por décadas. Para outros, era Toninho Malvadeza. 

Os equívocos e maldades que cometeu, possibilitaram a ascensão do Partido dos Trabalhadores, que já dominam a Bahia por quase duas décadas, fazendo bondades e cometendo grandes equívocos, que deram à Bahia os piores índices de Segurança Publica e um dos piores indicadores para a Educação Pública, além de transformarem nossa Polícia Militar na mais letal do país. As vítimas, quase todos pobres, quase todos pretos. 

Até quando teremos essa dicotomia entre opostos tão parecidos.

*Engenheiro e Mestre em Administração (UFBa). Foi diretor da Companhia Docas do Estado da Bahia, Superintendente de Transportes do Governo da Bahia e Assessor Especial da Federação das Indústrias de São Paulo- FIESP.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Adeus Íris Lettiere


Xico de Sá
Nada mais reconfortante do que ouvir a voz de Iris Lettieri (na foto) antes de embarcar no Antonio Carlos Jobim, o Galeão. Aquele aveludado, com tons de grave nada cinza, nos leva aos céus antes mesmo de qualquer partida.

Agora só é possível ouvi-la no internacional do Rio. Já esteve em outros no passado, como em Foz do Iguaçu, Manaus, Congonhas etc.

Na vastidão do Galeão a voz nos pega no colo, sussurra ao miocárdio, mostra que uma fêmea, muitas vezes, sequer precisa de um corpo.

Repito velha tese: mulher é metonímia, parte pelo todo. Basta um narizinho aqui, uma omoplata acolá, e está ganha a vida. Não carece ser bonita por completa. Melhor que não seja.


Voltando a ouvir atentamente La Lettieri, incluo a voz como parte dessa história. Com uma bela voz dentro do seu chatô, pouco importa que corpo tenha. Você só necessita daqueles fonemas noturnos ou matinais. Você vive de sussurros como um passarinho de alpiste.

A carioca dona da voz mais bonita do Brasil -Simone, de Olinda, com quem estudei, talvez seja páreo- foi a primeira mulher a apresentar um telejornal no país, na TV Globo, anos 1970. Depois foi para a TV Manchete, foi modelo, cantora, uma deusa.

Homens do mundo inteiro querem fazer amor com a voz de Iris. O Faith No More, por exemplo, incluiu, sem permissão, a gravação de sua voz na faixa “Crack Hitler”, do disco Angel Dust, de 1992. Deu um rolo danado. Achei uma bela homenagem.

Ao partir agora para o Recife, via Galeão, fechei os olhos, me senti em um quarto escuro, fazia amor com aquela voz. Para fazer amor com uma voz não é preciso o gemido de gozo mais explícito de Brigitte Bardot em “Je t’aime moi non plus”. 

Na voz de Iris, basta um Air France, voo 447, Rio/Paris… Basta um Gol, voo 1150, do Rio de Janeiro para o Recife… Nem carece que estejas indo para os braços da(o) amada(o). A viagem de negócios mais chata do mundo se torna um veraneio em Bora-Bora.

É sim possível fazer amor com uma voz. Viajo feliz. Como se nas asas da Panair e do desejo.

*Faleceu hoje, aos 84 anos, Iris Lettiere



Segurança Pública afetando a Educação


Editorial do Jornal Correio da Bahia

A violência urbana na Bahia atingiu um patamar que tem afetado diretamente a educação. A "guerra do tráfico" não tem dominado apenas ruas e vielas das cidades, mas também adentra os espaços que deveriam ser preservados por serem locais de aprendizado e desenvolvimento das nossas crianças e adolescentes: as escolas. Só este ano, 22 colégios de Salvador precisaram ficar fechados devido aos tiroteios, afetando 7.000 estudantes. Quando não perfura os corpos, a violência urbana encontra outro meio de comprometer o destino de meninos e meninas da periferia de Salvador. Tem sido uma briga desleal: fuzis contra salas de aula. E o resultado é uma tragédia anunciada. A Escola Municipal Laura Sales de Almeida, no bairro de Vila Verde, é um triste exemplo. Desde que os confrontos se intensificaram entre as facções criminosas Bonde do Maluco e o Comando Vermelho, a escola permaneceu fechada por vários dias e deixou crianças sem acesso ao direito fundamental à educação. As mães, desesperadas, traziam os filhos para a escola apenas para vê-los correr de volta para casa sob a chuva de balas. Os professores, temendo por suas vidas, recusam-se a voltar ao trabalho. 

Não se pode culpá-los. A instituição está situada em uma área de intenso confronto, onde os tiroteios são frequentes, e o medo, constante. É inaceitável que crianças e educadores sejam reféns de facções criminosas, e mais ainda que o governo petista permaneça inerte diante dessa situação. A violência na capital baiana não se limita ao fechamento de escolas. O comércio também sofre, os ônibus deixam de entrar em bairros afetados e a sensação de insegurança domina a população. As promessas de policiamento reforçado são vazias diante da realidade. As declarações das autoridades, ao sugerir que a presença policial eventual é suficiente para retomar a normalidade, são uma afronta àqueles que vivem diariamente sob o terror dos tiroteios. Mesmo com os policiais, o medo continua a reinar, e as medidas paliativas são insuficientes para devolver a paz às comunidades atingidas. O Instituto Fogo Cruzado revela uma realidade aterradora: em maio, sete adolescentes foram mortos a tiros na capital e na região metropolitana. Esse é o maior registro de mortes de vítimas nessa faixa etária em um mês desde julho de 2022. O governo da Bahia deve ser responsabilizado por sua inércia e falta de estratégia eficaz no combate ao crime. Os moradores de Salvador, especialmente os das áreas mais afetadas, merecem viver sem medo, e as crianças têm o direito fundamental à educação em um ambiente seguro. A omissão da gestão estadual não pode ser tolerada. É hora de exigir uma postura firme, transparente e eficaz do poder público. A violência não pode ser normalizada, e a segurança deve ser uma prioridade inegociável.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Uma ilha , duas realidades diferentes


Apesar de Haiti e República Dominicana estarem na mesma ilha — Hispaniola —, a história deles seguiu caminhos muito diferentes, e isso explica boa parte das enormes diferenças econômicas e sociais atuais.

O contraste vem de uma combinação de fatores históricos, geográficos, culturais e políticos. Vou organizar de forma clara:

1. História colonial diferente

Haiti foi colônia da França, que explorou intensamente a economia baseada em monocultura (açúcar, café) com uso massivo de escravizados africanos. Era uma das colônias mais ricas do mundo no século XVIII, mas essa riqueza ficava nas mãos da metrópole.

República Dominicana foi colônia da Espanha, que deu menos importância econômica à região (muitos recursos iam para México e Peru). A economia era mais diversificada e menos intensiva em mão de obra escravizada.

2. Independência e dívidas

O Haiti conquistou a independência em 1804, após a única revolta de escravizados bem-sucedida da história moderna. Mas a França exigiu, em 1825, uma indenização bilionária para reconhecer o país — o Haiti levou mais de um século para pagar, drenando recursos que poderiam ir para infraestrutura e desenvolvimento.

A República Dominicana teve períodos sob domínio espanhol e haitiano até consolidar a independência em 1844, sem dívidas externas gigantes comparáveis.

3. Política e estabilidade

O Haiti sofreu com instabilidade política crônica, golpes, ditaduras, ocupações estrangeiras (inclusive dos EUA) e ausência de instituições sólidas.

A República Dominicana também teve ditaduras (como Trujillo), mas desde os anos 1990 manteve maior estabilidade política e crescimento econômico consistente.

4. Economia e integração internacional

O Haiti depende fortemente de agricultura de subsistência e remessas do exterior; há pouco investimento estrangeiro e baixa industrialização.

A República Dominicana diversificou a economia: turismo, manufatura, zonas francas, exportações agrícolas e acordos comerciais com os EUA e Europa.

5. Geografia e meio ambiente

O Haiti sofreu desmatamento extremo (hoje cerca de 2% de cobertura florestal), o que afetou a agricultura, causou erosão e agravou desastres naturais.

A República Dominicana preservou mais áreas florestais e investiu em recursos hídricos e energia.

6. Cultura e identidade nacional

O Haiti é de língua francesa/crioula haitiana e tem forte herança africana.

A República Dominicana fala espanhol e tem uma identidade mais voltada para o mundo latino-caribenho, com maior proximidade cultural e comercial com países vizinhos.

Resumindo em uma frase:

Mesmo dividindo a mesma ilha, as origens coloniais, o peso das dívidas históricas, a estabilidade política, a gestão ambiental e a integração à economia global seguiram rumos muito diferentes, criando o abismo que vemos hoje.


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