Pedro Tourinho*
Segunda aconteceu aqui em São Paulo a pré-estréia do documentário, “Quebrando o Tabu”, de Fernando Grostein Andrade e Fernando Henrique Cardoso. Eu já estava há alguns meses esperando para assistir a este filme, aliás, fazia tempo em que eu não ficava tão ansioso para ir a uma pré-estréia.
Primeiro por causa do tema. Passei bastante tempo no Rio de Janeiro, onde o trafico e o crime organizado tornaram-se instituição, mas também já tive a oportunidade de viver a liberdade de consumo em Amsterdam, de visitar e discutir a realidade da Colombia e de morar na California, onde o consumo de Cannabis para fins medicinais é permitido. Ou seja, para mim sempre esteve muito claro que há outros caminhos, e que para o Brasil avançar no assunto talvez faltasse apenas credibilidade à discussão.
Segundo, por causa do Fernando Henrique. Sempre fui admirador do intelectual, do sociólogo e do Presidente. O único que governou com uma perspectiva histórica. Abriu caminho para Lula e para o Brasil que temos hoje. Não concordo com tudo que aconteceu durante seu período em Brasilia, e acredito que ele também não. Mas o jogo no Planalto é tão duro para intelectuais, quanto para torneiros mecânicos. Enfim, não vamos politizar. Aliás, politizar esse assunto, no pior sentido da palavra, é o único “porém” ao papel do Fernando Henrique nesta discussão. A participação do Fernando Henrique Cardoso no filme, e não do FHC, pode dar o peso que faltava.
Vamos ao filme. Em uma palavra: pragmático. O pragmatismo, citado inclusive pelo Fernando Henrique numa cena em Amsterdam, só leva em consideração uma ideia caso ela tenha um valor útil e funcional. E é exatamente isto que “Quebrando o Tabu” faz, acaba com a discussão metafísica da questão, coloca as cartas na mesa, a bola no chão, e traz uma visão extremamente prática. O filme relata o histórico da relação da humanidade com as drogas, mostra experiências de repressão pelo mundo e suas consequências, apresenta alternativas e no final propõe uma solução.
Com todo cuidado para não ser tendencioso, – posiciona-se.
A direção do Fernando Grostein é precisa. Talvez tão pragmática quanto o filme em si. Ele está ali em função da discussão que quer levantar, da história que quer contar, e não o oposto. E a história é contada de forma muito bem construida e didática, como deve ser em um filme que se propõe a estruturar uma discussão. Nos depoimentos, consegue tirar e explorar o melhor de cada entrevistado. O lado bom que todos têm, inclusive usuários de drogas. Só isto, esta forma de apresentar o usuário, já é em si um passo importante na descontrução do preconceito, na quebra do tabu.
A linguagem escolhida, que muitas vezes mistura realidade com ilustrações, em contraponto à sisudez da maioria dos entrevistados, traz o filme para nossa geração. A trilha de Lucas Lima tem também um papel muito importante na construção desta linguagem que coloca o filme precisamente em cima da linha entre o sagrado e o profano, entre a instituição e a rua. É uma orquestra ensaiada de temas e referências, que já mostra sua cara nos primeiros minutos do filme. Música clássica e Jim Morrison no mesmo tom.
Senti falta da California. Com décadas de experiência com liberação medicinal da maconha, e com 46% da sua população a favor de uma ainda maior liberadade de uso, sem dúvida este estado americano é, hoje, o grande palco do debate sobre a questão. Mas entendo que incluir mais este elemento no documentário poderia tirar um pouco a clareza e o foco da discussão, pois a questão californiana possui características bem próprias e contraditórias. Mereceria um documentário inteiro por si só.
Talvez colocar a discussão à frente da história, na produção de um filme (e todo filme tem a missão de contar histórias), tenha sido uma decisão arriscada. Mas, ao meu ver, acertada. Alguns elementos do documentário, personagens e informações, estavam ali claramente para cumprir seu papel na estruturação da discussão, e não necessariamente para ajudar a construir um enredo. O que também deixa claro que o doc foi rodado a partir de uma perspectiva histórica do seu papel social (e que qualquer semelhança entre os Fernandos do filme não é mera coincidência).
Por fim, entrei na sala de cinema para assistir a estreia e dei de cara com Fernando Henrique Cardoso. Já estavam lá Pedro Moreira Salles, Drauzio Varela, Marcelo Serpa e Luciano Huck. Fui assistir junto com uma das famílias mais tradicionais que conheço, no melhor sentido possivel da palavra. Todas essas pessoas, ícones no que fazem, talvez nunca tivessem a necessidade, oportunidade ou motivação para se posicionar sobre esse tema, ou nem ao menos disponibilidade para se envolver na discussão, mas estavam todas lá, de uma forma ou de outra, quebrando o tabu.
E, no final, talvez seja isso mesmo que faltasse para que a discussão sobre a repressão às drogas decolasse no Brasil: informação, envolvimento e credibilidade. E isto, o filme nos trouxe.
Não deixem de assistir, e não deixem de levar seus pais e amigos para assistir. Concordando ou não, vocês já estarão também, de uma forma ou de outra, quebrando o tabu.
@PedroTourinho , publicitário e especialista em entretenimento
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