Marcelo Coelho*
Boa notícia para as crianças americanas. Vai ficando optativo, nos Estados Unidos, escrever em letra de mão. Um dos últimos a se renderem aos novos tempos é o Estado de Indiana, que aposentou os cadernos de caligrafia agora em julho.
O argumento é que ninguém precisa mais disso: as crianças fazem tudo no computador e basta ensinar-lhes um pouco de digitação. Depois do fim do papel, o fim do lápis e da caneta! Tem lógica, mas acho demais.
Sou o primeiro a reclamar das inutilidades impostas aos alunos durante toda a vida escolar, mas o fim da escrita cursiva me deixa horrorizado.
A máquina de calcular não eliminou a necessidade de se aprender, ao menos, a tabuada; não aceito que o teclado termine com a letra de mão.
A questão vai além do seu aspecto meramente prático. A letra de uma pessoa é como o seu rosto. Como todo mundo, gosto de ver como é a cara de um escritor, de um político, de qualquer personalidade com quem estou travando contato -e logo os e-mails virão com o retrato do remetente, como já acontece no Facebook.
E não se limita apenas aos colecionadores o interesse pelos autógrafos de uma celebridade, de um jogador de futebol ou de um escritor (mesmo que os originais de seus livros já tenham sido produzidos na máquina de escrever ou no laptop). Quantas decepções, e quantas surpresas felizes, não nos revela a caligrafia de uma pessoa? Fulano, em geral sério e ponderado, tem a assinatura de um pateta do pré-primário. O síndico, figura minuciosa e intolerante, derrama sobre o papel uma escrita frouxa, emotiva, sentimental.
Generosidade e avareza, sofisticação e simploriedade, constância e frivolidade, tudo está na letra de uma pessoa, como está na sua voz ou no seu rosto -desde que a gente saiba ler.
O mais bonito é que na letra cursiva se reúnem, em tese, o individual e o universal. Cada pessoa pode ter lá suas idiossincrasias: escreve o "n" como se fosse um "u", não se dá ao trabalho de fazer direitinho o corte do "t", mistura o "g" com o "y" e o "q", mas não importa. A menos que o sujeito seja um garranchista irremediável, acabamos entendendo o que escreveu. Tenho prazer, aliás, em decifrar letras moderadamente ilegíveis. Existe um jogo entre a regra geral, a caligrafia das professoras do primário, e as variantes que ao longo da vida cada pessoa adota em sua escrita.
Moral da história: somos todos iguais, mas cada um de nós é diferente. Outra moral da história: entre minha comodidade caligráfica e a necessidade de ser entendido por quem me lê, está em jogo o respeito pelo outro e a expressão de quem eu sou.
É falta de educação, acho, ter uma letra feia demais; é falta de personalidade, também, escrever como o queridinho da professora. Não por acaso, ainda se usa nos convites de casamento uma imitação da escrita cursiva de cem anos atrás. Não é o meu tipo favorito de apresentação tipográfica, mas seu significado não dá margem a dúvidas: trata-se de um movimento de extrema cortesia, de uma homenagem ao acontecimento e ao convidado.
As letras de computador, por mais práticas que sejam, correspondem a uma realidade mais mecanizada e uniforme. Já temos o corretor ortográfico; ainda bem que ele falha de vez em quando e que muita gente se esqueça de usá-lo. Um belo erro de ortografia, assim como uma letra da idade da pedra, revelam verdades que a assepsia da tela branca do Word se esforça em ocultar.
Mesmo uma banalidade tremenda se torna mais suportável se escrita numa letra extravagante, em vez de na detestável fonte Arial adotada no Outlook, provavelmente só porque é a primeira em ordem alfabética na lista das letras disponíveis. Mas, no meio desta reclamação toda, recupero minha confiança no progresso e na tecnologia. Quem sabe, nos próximos anos, não vão inventar um programa pelo qual será possível personalizar a tipografia que utilizamos no PC?
Novas "fontes", novos estilos de letras, são inventados todo dia. Os jornais importantes, como a Folha, têm um desenho próprio para suas letras. Imagino que não seja impossível uma situação em que cada usuário de computador consiga desenvolver sua própria escrita.
Só espero que até lá tenham inventado, também, uma maneira de fazer as crianças americanas ocupadas em aprender alguma coisa que preste.
*Articulista do jornal Folha de São Paulo
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