Contardo Calligaris*
Na minha adolescência, em Milão, no Carnaval, era raro que alguém promovesse uma festa à fantasia; em geral, os poucos estabelecimentos que alugavam fantasias propunham figurinos abandonados por companhias de teatro falidas: a festa cheirava a naftalina, de dar dor de cabeça.
Antes disso, na minha infância, as mães fantasiavam suas crianças e as levavam pelas ruas. No meu caso, isso acontecia em Veneza, onde, por sorte, havia mais crianças fantasiadas do que em Milão -eu não era a única vítima dessa inspiração materna.
Mais tarde, imaginei que, com aqueles passeios de fantasia, minha mãe quisesse me mostrar que, na vida, é sempre possível ser outro: Polichinela, Arlequim, Scaramouche e, muitas vezes, Pierrot. A prevalência de Pierrot demonstra, aliás, que, fantasiando-me, ela não pretendia me ensinar um atalho para chegar à eterna felicidade; o que lhe importava me transmitir era só a alegria de se reinventar, de ter uma vida variada -feliz ou triste, como a de Pierrot, tanto fazia.
De qualquer forma, na época, eu criticava aqueles passeios. Era para todos acharem que eu era outra pessoa? Fracasso: não íamos enganar ninguém, visto que ela não estava fantasiada, e os vizinhos, reconhecendo-a, saberiam imediatamente que a criança era eu.
Esse raciocínio era bem veneziano. Na Veneza antiga, havia as máscaras de nariz comprido, no qual as pessoas socavam ervas que filtrassem as pestilências, e havia, Carnaval ou não, a vontade de se deslocar pelas ruelas da cidade no anonimato. Os venezianos protegiam sua vida privada (política e amorosa) vestindo todos capa e tricórnio pretos com a mesma máscara básica, branca ou preta.
Essas máscaras para preservar o anonimato eram, por assim dizer, fantasias para poder continuar sendo si mesmo (no caso, às escondidas). No Carnaval de Veneza hodierno, na rua ou nos bailes, máscaras e fantasias não servem mais para que possamos ser nós mesmos anonimamente, mas para que o sonho ou a ilusão de podermos ser diferentes sejam reconhecidos por todos, numa espécie de reciprocidade: te felicito por tua fantasia se você me felicita pela minha.
Em suma, já houve fantasias para sermos nós mesmos e, hoje, há sobretudo fantasias para sonhar e fingir ser outro. Não desdenho essa função da fantasia. Afinal, talvez fosse para manter vivo o sonho ou a ficção de ser outro que minha mãe me levava fantasiado pelas ruas.
Passei o feriado no Rio, onde o Carnaval de rua voltou, com a multiplicação dos blocos e com um clima permanente (e civilizado) de festa no asfalto (o da zona sul, no mínimo). Tanto na rua como na Sapucaí, hoje, a fantasia me parece servir mais para sonhar em sermos outros do que para autorizar lados escondidos de nós mesmos, que a fantasia, por assim dizer, permitiria.
Mas eis que alguns amigos não concordam: segundo eles, as fantasias serviriam, justamente, para que ousemos ser nós mesmos. Os antigos venezianos, para agir "soltos", precisavam apenas do anonimato -e por isso eles se fantasiavam.
Nós, para chegar à mesma "soltura", precisaríamos vencer poderosas inibições; a fantasia (com a ajuda da cerveja) nos levaria a acreditar que, uma vez fantasiados, sendo um pouco diferentes, estaríamos (até que enfim) à altura de nossos próprios impulsos reprimidos.
Prova disso, acrescentam os mesmos amigos, são os excessos sexuais que acontecem no Carnaval: tudo seria permitido porque, por um instante, achamos que não somos nós, é a fantasia que cai na gandaia.
De fato, existe um lugar-comum, segundo o qual, no Carnaval, a gente se permitiria perigosos excessos sexuais -é por isso que o Ministério da Saúde concentra suas campanhas de prevenção no Carnaval. Mas é apenas um lugar-comum.
Foi publicada já em 2010 ("Rev. Assoc. Med. Bras.", vol. 56, nº 4, SP 2010; http://migre.me/7ZKpc) uma pesquisa (prolongando a dissertação de mestrado de Wilma Nancy Campos Arze, http://migre.me/80OQl) que mostra o seguinte: durante o Carnaval, em matéria de sexo, não pode acontecer nada muito diferente do de sempre, visto que, como consequência do Carnaval, não aumentam nem as infecções por doenças sexualmente transmissíveis nem as gravidezes indesejadas.
Conclusão: a ideia de que o Carnaval seja um momento orgiástico, em que soltamos desejos reprimidos, é apenas um aspecto do sonho de sermos um pouco diferentes do que somos -ou seja, é apenas mais uma fantasia de Carnaval.
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