Luiz Zanin Oricchio*
A Invenção de Hugo Cabret, indicado em 11 categorias para o Oscar, mostra um Martin Scorsese aberto a novidades, aos 69 anos de idade. Mas esse filme é também como que a consequência lógica do desenvolvimento de toda a sua carreira.
Em termos de novos desafios, este é seu primeiro filme que poderíamos definir como dedicado ao público infanto-juvenil, e também o primeiro em que utiliza a técnica de 3D. Por outro lado, é como se fosse a consequência inevitável de uma vida dedicada ao cinema, à sua história, à preservação de obras ameaçadas, ao culto aos pioneiros.
A Invenção de Hugo Cabret, baseada no livro homônimo de Brian Selznick (edição brasileira da SM, 2007), é como um presente oferecido a Scorsese, tantas são as conexões do material literário com a própria experiência de vida e de cinema do diretor.
A esta altura, acho que a maioria das pessoas já conhece os traços gerais da trama, sem mencionar detalhes capazes de estragar o prazer de quem for ver o filme pela primeira vez. Mas, enfim, vamos lá. O garoto que dá título à obra (interpretado por Asa Butterfield) perde o pai e passa a ajudar o tio alcoólatra na manutenção dos relógios de uma estação de trens em Paris. O pai (Jude Law) lhe deixou um autômato avariado que, ao que parece, é capaz de escrever. O desafio de Hugo é consertar o tal robô e receber a mensagem. Para isso, Hugo, que é muito engenhoso e bem dotado para as coisas mecânicas, "pede emprestadas" algumas peças de um velhinho, dono de uma loja de brinquedos (Ben Kingsley).
Pronto. O resto é com você, espectador. Prepare-se para ser levado a um mundo fantástico em que mecanismos sofisticados da relojoaria rivalizam, em complexidade, com os sentimentos humanos.
Que o mundo da técnica tem conexões com o universo dos afetos imaginários, todo mundo sabe. Daí o fascínio pelos mecanismos dos relógios, que afinal medem o tempo, matéria da qual somos feitos - e desfeitos. Fascínio também pelos autômatos, esses seres construídos à imagem e semelhança do homem, que brinca de ser Deus. O autômato seduz, atrai e assusta. Seu caráter híbrido inquieta. E O Inquietante é a tradução que Paulo César Souza encontra para um texto clássico de Freud, Das Umheimlich, que tem sido traduzido como O Estranho, de maneira geral. O que importa é que Freud cita no texto os Contos Noturnos, de E. T. A. Hoffman, em especial a narrativa O Homem da Areia, no qual figura a boneca mecânica Olímpia, pela qual um jovem se apaixona. O autômato parece estranho porque é humano e não é. Mecânico, pode parecer real.
Mistério dos autômatos, mistério ainda maior das imagens em movimento, do seu realismo que assustava as pessoas ao verem um trem que parecia avançar sobre elas. O cinema era uma magia, no sentido literal do termo. E Scorsese recorda, é claro, o primeiro homem a ter pressentido no cinema uma grande potencialidade ficcional. Um fabuloso meio de criar histórias, tanto plausíveis quanto perfeitamente imaginárias, isto é, absurdas e, no entanto, ganhando realidade quando projetadas numa tela. Estamos falando de Georges Méliès (1861-1938), o criador do cinema-espetáculo, autor de mais de 500 filmes, entre os quais o clássico Viagem à Lua.
Em A Invenção de Hugo Cabret reencontramos Martin Scorsese e sua posição única entre os cineastas. Dos contemporâneos, é o que possui a maior erudição. Viu milhares de filmes, estudou-os, sofreu e amou com eles, tentou extrair suas lições técnicas e implicações éticas. Basta assistir a seus dois documentários consagrados ao cinema - um ao cinema norte-americano; outro, ao italiano - para nos convencermos que Scorsese ama, de fato, a arte que abraçou. Não aquele amor bobo, lacrimoso, pro forma, de discurso. É um amante que conhece perfeitamente as manhas e mistérios do seu objeto de desejo e não o ama menos por isso.
Desse modo, não poderia deixar de comemorar, no sentido profundo do termo, o criador de formas e ilusões que foi Méliès. A Invenção de Hugo Cabret é homenagem a outra invenção, aquela que seus próprios criadores, os Irmãos Lumière, haviam chamado de "sem futuro", e, na verdade, se transformaria na grande arte do século 20. E, talvez, do século 21, mas isso ainda está em aberto.
*Crítico de cinema do jornal O Estado de São Paulo
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