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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Caetano, era mais do que isso , sim


Quando está dando alguma entrevista e, num determinado momento, arregala os olhos ou abre um sorriso meio de canto de boca, pode ficar certo, Caetano vai lançar alguma bomba. E esta certamente repercutirá. Antes da internet, ela ecoava apenas na imprensa e nas rodas de conversa, mas agora tem o acréscimo das redes sociais para reverberar. E foi o que aconteceu na semana passada, ao ser exibido no portal UOl o vídeo em homenagem aos 50 anos do Please, please me, primeiro disco dos Beatles. O compositor baiano era um dos entrevistados do site e logo tornou-se, claro, o chamariz da reportagem, com a declaração de que a banda inglesa, naquela época, era o mesmo que Justin Bieber. “Não era mais do que isso”, complementou.
Poderíamos abraçar cegamente o disparate de Caetano ou simplesmente (tentar) ignorá-lo, mas as tais redes sociais não deixam. Por isso, faremos um pequeno exercício, que vai envolver lógica, matemática e história. Primeiro, o cantor poderia ter feito uso da expressão “no princípio” (“no princípio, achei bobinho”). Mas só usou o “achei bobinho” e complementou: “Veja bem, nessa época eu ouvia Thelonious Monk”. Ora, quem ouve jazz ou música erudita provavelmente poderá achar “bobo” qualquer exemplar da música pop. Mas não significa que ela seja “boba”, principalmente em se tratando dos Beatles, que, via de regra, são bastante respeitados por músicos, populares ou eruditos, e influenciam (ainda) milhares de artistas ao redor do mundo, incluindo o próprio Caetano, na formação estilística do Tropicalismo – quem trouxe essa carga ao movimento foram os Mutantes; Rita Lee era louca pela banda, chegando a dar plantão na frente do estúdio Abbey Road para conseguir algum contato com os ingleses.
Não se sabe ao certo do que exatamente Caetano estava falando em relação a essa comparação com Justin Bieber. Se for em termos musicais, isso é ridículo. Porque hoje é fácil dizer que a música dos Beatles era “bobinha”. Mas, na época, uma canção como Please, please me, que até conotação sexual tinha (“por favor, satisfaça-me”), era pura pedrada e lançou os referencias para a evolução do rock – que, então, já era um tipo de som abandonado pelos próprios americanos. Na época, a banda que fazia sucesso na América eram os Beach Boys, com sua surf music ingênua, de garotos que falavam em amor eterno, casamento, carros e garotas. Não custa lembrar que os Beatles, com o Rubber Soul (1965) foram responsáveis por incentivar a banda americana a realizar um dos melhores álbuns da história, Pet Sounds (1966).
O “bobinho” Please, please me é um clássico do rock’n'roll, abarcando vários subgêneros do estilo, e começa de maneira arrebatadora com I saw her standing there, cuja letra, após o “one, two, three, four”, desponta com um nada politicamente correto “Ela tem apenas 17 anos e você sabe o que estou querendo dizer”, e termina com um cover, que se tornaria um clássico do rock Twist and Shout, e era, até então, o que havia de mais agressivo no gênero musical. Bem, se o disco de estreia de Justin Bieber causou impacto semelhante a isso, em 2009, não sei onde ele aconteceu, porque eu não vi. O maior hit do garoto, Baby, é apenas um truque de produção de estúdio e não se sustenta sozinho num violão – ao contrário das faixas do Please, please me.
Bem, se Caetano estava se referindo às letras, não podemos fazer nada para mudar o passado. A música pop do início dos anos 1960 girava em torno disso mesmo, “eu a quero”, “ela não me quer”, “ela me deixou por outro”, “estou tão só”. Só a partir do advento de Bob Dylan é que os versos começaram a ficar mais complexos, sofisticados, chegando a ganhar status de poesia e estudos em universidades. O compositor americano, por sua vez, trouxe essa influência do folk e do blues, apresentando narrações por vezes realistas; outras, surrealistas; com citações, referências literárias…
Os Beatles, assim como centenas de outros artistas, abarcaram essa herança dylanesca e isso pode ser sentido já a partir do Rubber Soul, com Nowhere Man Norwegian Wood. É partir daí também que a música do quarteto passa a ficar mais elaborada, em termos de arranjos, mas isso não significa que antes, com Please, please me, With the Beatles, A hard days night, Beatles for sale, Help não haja genialidade. Há. É fácil dizer que é fácil, para quem já encontra o serviço feito. Vá (tentar) fazer. It won’t be long é uma música simples? Tente fazer – igual ou parecido. Criar uma música de qualidade, que agrade, vire sucesso e vença a barreira do tempo, talvez seja um dos exercícios mais difíceis para um músico. E não importa quantos acordes ela tenha. Podem ser dezenas, três ou quatro.
Se o autor de Sampa se referiu ao impacto pop de Bieber e dos Beatles é, mais uma vez, um despautério. Porque o sucesso da banda inglesa chegou mesmo a superar o que seria insuperável, Elvis. Ultrapassaram o ícone maior, em termos de execução em rádio, aparições na TV, vendagens de discos e, claro, em quantidade de música realmente boa, já que o Rei do Rock, como intérprete, dependia do material que lhe chegava – e este nem sempre era realmente bom. A história dos Beatles é sem precedente e, até agora, sem sucessor. Talvez o caso posterior mais próximo seja o de Michael Jackson, com o arrasa-quarteirão Thriller (1982).
O lançamento de Please, please me causou um verdadeiro alvoroço no mercado fonográfico mundial, reorganizou o formato e o status da música popular. Antes do surgimento da banda, a parada de sucessos britânica era formada por trilhas sonoras de filmes, musicais de Londres e da Broadway, Elvis Presley… Até então, os únicos britânicos que alcançaram algum sucesso eram Cliff Richard and The Shadows. Enquanto isso, nos EUA, o rock era praticamente dado como coisa do passado, os artistas eram os mesmos que tinham surgido na década anterior, com exceção dos já citados Beach Boys, os “queridinhos da América” até a Invasão Britânica, em 1964, quando os Beatles foram a ponta de lança.
Com a declaração de Caetano, houve até quem falasse que deveria ser feito um paralelo entre os Beatles e as boy bands. Poderíamos dizer que os rapazes de Liverpool, porque eram jovens e bonitinhos, com aquele corte de cabelo (que, a propósito, era uma revolução para os padrões vigentes), formaram a primeira boy band. Mas, ainda assim, não lembro de ter visto alguma imagem de John, Paul, Ringo e George fazendo coreografias no palco enquanto cantavam.
Seria mais lógico buscarmos a origem das boy bands no Jackson 5, porque estes cantavam e dançavam, bem de acordo com o restante dos grupos da Motown. No entanto, o conjunto, liderado pelo menino-prodígio Michael, tinha um apelo infanto-juvenil maior que os outros artistas dessa gravadora. As apresentações eram um loucura, com várias adolescentes gritando, bem ao modo da Beatlemania. O Jackson 5 tinha um arsenal de ótimos compositores da empresa fonográfica que o abastecia de sucessos, como I’ll be thereABCI want you back – músicas que retratavam a dor de cotovelo adolescente, o que poderíamos vincular às boy bands, mas, ainda assim, seria injustificado, porque as músicas do J5 são clássicos absolutos, enquanto as desses grupos de dançarinos são apenas sucessos momentâneos que não venceram a barreira do tempo, a não ser para antigas fãs que cresceram, mas guardaram a nostalgia da época em que eram mais jovens. Além disso, esses conjuntos de rapazes bonitos costumam ser fabricações de gravadoras para alimentar seus cofres.
A frase de Caetano é tão revoltante, porque é incorreta, injusta, irresponsável. Soa mais como uma vontade de polemizar do que analisar. Se ele tentou fazer um revisionismo histórico, foi bastante infeliz, porque a própria história tratou de mostrar a realidade, e não precisou de muitos anos para se perceber que os Beatles não eram algo passageiro, assim como também o Jackson 5, Michael Jackson e o próprio baiano, que, no disco Qualquer coisa, cantou Lady MadonnaFor No OneEleanor Rigby em versões voz-e-violão – formato que se tornaria uma praga nas décadas seguintes. Quanto a Justin Bieber e essas boy bands, que aparecem e desaparecem a cada década, vão ter que rebolar muito – literalmente – para passar pelo crivo do tempo. Estimado Caetano, os Beatles, mesmo em 1963, eram mais do que isso.

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