Wilson Gomes*
Esse mês apareceu pela enésima vez a pergunta sobre quais são, afinal de conta, os sentimentos que o PT nutre pelos regimes autoritários de esquerda.
Há razões para se ter dúvida a respeito disso, considerando que não faltam paradoxos.
Pois se, por um lado, há um partido que pode se orgulhar de ter sido forjado na luta contra a ditadura militar, esse é o Partido dos Trabalhadores. Além disso, o seu maior líder, em seus dois mandatos, manteve-se convictamente dentro das quatro linhas da democracia liberal, com raros deslizes. Lula e o PT nem de longe representaram qualquer ameaça à democracia brasileira, muito ao contrário do que aconteceu nos tempos bolsonaristas.
Por outro lado, parece que Lula e as lideranças petistas compartilham com a melhor parte da sociedade brasileira um profundo desprezo por autocracias de direita, mas não têm sentimentos comuns quando a autocracia, implantada ou encaminhada, é de líderes e partidos de esquerda.
Basta um rápido exame da memória recente e vão brotar lembranças sobre declarações de afetos e gestos de solidariedade ao governo da Venezuela e de Cuba, sobre apoios negados à reivindicação de prisioneiros e perseguidos dos regimes autoritários de esquerda, sobre a ausência de condenação ou crítica diante da repressão a manifestações populares ou à prisão de opositores. Ultimamente, vimos como a repressão a protestos em Cuba e, por último, o caminho de Ortega para mais um mandato presidencial pavimentado pela prisão de nada menos que todos os candidatos da oposição, foram tratados com o ululante silêncio de sempre, com desconcertante indulgência ou, enfim, foram acompanhados por cumprimentos públicos pela “vibrante democracia” debaixo da bota de ditadores de esquerda. Numa entrevista ao jornal espanhol El País, depois de uma excursão europeia, Lula novamente teve uma chance de afastar as suspeitas públicas, inclusive insistentemente alimentadas pelos bolsonaristas, da complacência petista com ditaduras de esquerda. Numa entrevista amistosa para um jornal que lhe dera a capa da edição nacional no domingo, as perguntas eram praticamente um convite para que Lula firmasse a sua desaprovação moral às situações de Cuba e da Nicarágua.
Aliás, a situação da Nicarágua era um caso fácil para um juízo de desaprovação, posto que até Pepe Mujica, a figura mais carismática da esquerda latino-americana, havia condenado os absurdos perpetrados por Ortega e sobre os quais não parece pairar dúvida entre as lideranças democráticas do mundo. O próprio ministro das Relações Exteriores da Espanha, o país anfitrião de Lula, já havia feito o mesmo. A bola estava levantada, era só cortá-la. Lula, contudo, refugou.
Os argumentos de Lula sobre a Nicarágua foram quatro.
O primeiro deles é uma falácia apreciada pelo Partido. “Temos que defender a autodeterminação dos povos”. Ora, a pergunta da jornalista não foi sobre se o ex-presidente recomenda uma interferência estrangeira na Nicarágua, mas uma demanda por um juízo de valor sobre um líder autoritário e os abusos antidemocráticos a que está recorrendo. Um juízo que Lula não foi capaz de dar na direção certa nem com a clareza necessária.
O que, além de tudo, é contraditório, pois quando saímos por aí pedindo ao mundo para condenar um governo genocida ou o lawfareque meteu Lula na cadeia, não estávamos pedindo que o mundo desrespeitasse a nossa autodeterminação, mas que declarasse a ilegitimidade de uma situação política.
O segundo argumento foi uma comparação bem no estilo que eles próprios chamam de “falsa simetria”: “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, González, 14, e Daniel Ortega, não?”, desafiou Lula. A resposta deveria ser óbvia: se um primeiro ministro fica tantos anos no cargo é porque as regras do jogo das democracias parlamentares o permitem. Não é, contudo, das regras do jogo do presidencialismo atual algo semelhante. Democracia tem a ver com jogar o jogo conforme as regras. Quando se resolve usar regras parlamentares em uma democracia presidencialista, temos aberrações, como o impeachment de Dilma Rousseff que todo mundo sabe que foi aplicado apenas porque ela perdeu maioria parlamentar. São duas regras para dois jogos diferentes e é melhor não as embaralhar. Mas duvido que Lula não saiba da distinção.
Independente disso, há o detalhe da questão dos meios empregados para se conseguir os tais mandatos. Foi o que observou Pepa Bueno, a editora-chefe do El País, quando se viu obrigada a dar a primeira “invertida” no ex-presidente: Merkel e González nunca precisaram meter na prisão os opositores para conseguir manter-se no cargo. Pois é. Um detalhe do tamanho do mundo para quem tem convicções democráticas.
O terceiro argumento foi uma confissão de agnosticismo: “Eu não posso julgar o que aconteceu na Nicarágua”, “eu não sei o que as pessoas fizeram para ser presas”. Ora, ou Lula não sabe mesmo e é desinformado demais para um sujeito com a experiência de Lula. Ele simplesmente não quer saber, uma vez que o vínculo de solidariedade com Ortega precede qualquer juízo de valor acerca da autocracia que ele implantou. A segunda hipótese parece-me a mais óbvia.
Por fim, só depois da objeção de Pepa Bueno, Lula resolve assumir uma posição condenatória: “Se o Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição, ele está totalmente errado”. Reparem no condicional “Se”. Para Lula, não é certo que tal fato tenha acontecido, mas, em princípio, se ocorreu está errado.
Os lulistas, que se viram confrontados com as sobrancelhas arqueadas de quem viu a entrevista, acreditam que essa sentença apaga ou mitiga as afirmações anteriores e soam como uma condenação? Eu não. E duvido que mais alguém, além dos lulistas de coração, saíram convencidos dessa história.
Sobre Cuba, o primeiro argumento foi no clássico modelo “todo mundo faz isso, vocês só reclamam quando é Cuba”. “Não é só em Cuba que protestos são proibidos. No mundo inteiro, protestos são proibidos.” Um argumento que serve basicamente para dizer que não há qualquer singularidade na repressão e proibição dos protestos de Cuba, todo mundo reprime, e é um raciocínio tão bom quanto o que justifica a corrupção afirmando que todo mundo é corrupto mesmo.
Em seguida, vem outro clássico: a acusação de seletividade. “Agora, é engraçado porque a gente reclama de uma decisão que evitou protestos em Cuba, e a gente não reclama que os cubanos estavam preparados para dar vacinas e não tinha seringas e os americanos não permitiram que entrasse vacina em Cuba.”
Lula não quer condenar as decisões antidemocráticas de Cuba, o que ele quer é desqualificar as acusações de que ali não há democracia. Então, acusa os críticos do regime cubano de indignação seletiva, de não condenar o imperialismo, como se isso desse uma isenção ao amigo. É quando leva, então, a segunda invertida da editora do El País, usando argumento que ocorreria a qualquer pessoa de bom senso: “Presidente Lula, se podem fazer as duas coisas: condenar o bloqueio e pedir liberdade nas ruas para os opositores”.
Na ausência de qualquer outro argumento aceitável, Lula fecha com o “Você vai conquistar a democracia em Cuba terminando com o embargo”, como se essa posição, mesmo que fosse verdadeira, dispensasse qualquer democrata de dizer que as coisas não estão bens para os direitos civis naquela Ilha.
O fandom petista correu em defesa de Lula e às acusações de sempre contra os seus críticos: de que há seletividade de indignação, de que a gente deveria falar era dos defeitos da democracia norte-americana e da nossa, de que as empresas de jornalismo já apoiaram a ditadura, de que Biden não denunciou ditaduras do Golfo Pérsico, de que os jornalistas não têm moral para criticar Lula porque servem aos seus patrões. Os clássicos. Que não tocam em nada do que realmente importante, isto é, na questão de quais são os sentimentos de Lula e do PT por ditaduras de esquerda.
Outros, condescendentes, minimizaram. Foi só uma bravata magnificada pela hipervigilância a que se submete Lula, foi só um deslize, nada demais, Lula é um democrata, todo mundo sabe.
Quer saber? Lula não teve um mau dia ou fez uma bravata. O que ele expressou são as suas convicções sobre governos de esquerda que também são ditaduras. Sempre foram essas. E a de muita gente da esquerda, principalmente da sua geração. Para eles, há coisas muito mais importantes do que a democracia, como comida no prato, como um relacionamento mais estreito entre o governo e massa de pobres típica dos países latino-americanos, como um projeto de justiça social.
Por isso mesmo é que uma das saídas clássicas da crítica de ditaduras de esquerda é desqualificar a democracia real, afirmando que ou ela é intrinsecamente defeituosa por ser liberal e burguesa, ou diagnosticando que a sua implementação é imperfeita, injusta e distorcida, e não favorece os mais pobres nem as minorias. Em suma, democracia é boa, se a alternativa for uma ditadura de direita, mas não é tão boa assim, se o socialismo for uma alternativa à mesa. Esta é uma posição minoritária na esquerda, acredito, mas é resiliente.
O que Lula pensa e diz (talvez não devesse) é só a versão light da crença de uma parte da esquerda de que o socialismo é mais importante que a democracia. Na versão light, justiça social e cuidado com os mais pobres justificam até negligenciar ou atacar a democracia burguesa.
Essa crença na superioridade do socialismo sobre a democracia liberal é uma questão que pode até passar sem ser notada em outras ocasiões, mantendo-se como assuntos de seminários e convescotes de esquerda. Mas, aqui e agora, no mundo real, neste momento de dominação bolsonarista, em que precisamos de pessoas com profunda convicção democrática, é um desastre.
Quando tivemos à frente do governo um sujeito que desejaria imensamente ser um ditador, é preciso ter superioridade moral para dizer que na nossa democracia não se toca e que ditadura nunca mais, não importa de que tipo. Não se pode, em hipótese alguma, aliviar para ditaduras e autoritarismo, não importa se de direita ou de esquerda.
“Ah, mas Lula é democrata”, diz-se. Não duvido de que seja verdade, mas, neste momento, não basta ser democrata, tem que parecer democrata, tem que condenar todas as ditaduras.
Lula perdeu mais uma oportunidade de ouro para mostrar o quão é superior ao bolsonarismo também no quesito “complacência com ditaduras”.
* Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas(Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes
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