Demetrio Magnoli*
A China rompeu a inércia. A conversa telefônica entre Xi Jinping e Volodymir Zelensky — concluída pela nomeação de um “enviado à Ucrânia e a outros países” com a missão de promover uma solução política para a guerra — muda as regras do jogo. A iniciativa pode ser interpretada como, apenas, um expediente destinado a congelar o cenário militar às vésperas da aguardada contraofensiva ucraniana. Contudo parece indicar bem mais que isso. Segundo uma tese largamente difundida, interessaria à China o prolongamento da guerra. Por essa via, Xi almejaria ossificar a aliança desigual sino-russa e provocar fissuras crescentes entre Washington e seus aliados europeus da Otan, que sofrem as consequências da crise de oferta energética. A visita do francês Emmanuel Macron à China seria prova de que o tempo pesa favoravelmente à potência asiática, ainda mais diante da aproximação de uma perigosa eleição presidencial nos Estados Unidos.
O raciocínio ignora o objetivo econômico estratégico chinês de conservar acesso ao mercado consumidor europeu. O ambicioso projeto chinês Belt and Road (ou Nova Rota da Seda) destina-se a conectar a Ásia Oriental à Europa, o que inspirou analistas cínicos a batizá-lo como Ferrovia Pequim-Berlim. As relações sino-europeias tornaram-se ainda mais vitais, para os dois lados, diante do nacionalismo econômico americano promovido tanto por Donald Trump quanto por Joe Biden. As extensas restrições impostas pelos Estados Unidos à indústria chinesa de semicondutores não deixam a Xi a alternativa de perder a Europa.
A “amizade ilimitada” entre China e Rússia, proclamada pouco antes da invasão russa da Ucrânia, tem limites. Há pouco, o embaixador chinês na França, um dos wolf warriors, como ficaram conhecidos os diplomatas da tropa de choque de Xi, colocou em questão a legalidade das fronteiras dos “Estados pós-soviéticos”. A curiosa declaração, que implicaria negar pleno reconhecimento às fronteiras da própria Rússia, mirava a Crimeia — e provocou escândalo na Europa. Ato contínuo, o governo chinês desautorizou seu enviado, reafirmando adesão à soberania territorial de todas as nações.
Nenhuma declaração oficial chinesa — nem mesmo seu dúbio “plano de paz”, que congelaria temporariamente o cenário militar — sugeriu a cessão de territórios ucranianos à Rússia. Entre os líderes nacionais relevantes, com a óbvia exceção de Vladimir Putin, somente Lula ousou insinuar um caminho de paz baseado na destruição da integridade territorial da Ucrânia.
Não interessa a Xi associar-se a Putin numa guerra sem fim que deflagraria a desconexão econômica da Europa com a China. Entretanto uma nítida derrota russa atingiria os interesses vitais chineses, pois sua consequência quase certa seria a derrocada do regime de Putin.
Na etapa inicial da Guerra Fria, a China operou como parceiro menor da União Soviética e depois, a partir de 1972, transitou à condição de parceiro secundário dos Estados Unidos. O pós-Guerra Fria, especialmente depois da ascensão de Xi, inaugurou a rivalidade global sino-americana e, ao mesmo tempo, inverteu a balança de poder China/Rússia. Na nova aliança sino-russa, é a Rússia que opera como parceiro menor. Estrategicamente, o interesse chinês é preservar a aliança com a potência nuclear euroasiática, evitando o isolamento geopolítico. Trata-se de impedir, a todo custo, que Putin seja tragado no vórtice de sua aventura ucraniana.
O “plano de paz” chinês menciona a soberania “de todos os países”, mas não condena a agressão russa e a violação da integridade territorial ucraniana. Exercitando-se na barra assimétrica da ambiguidade, Xi encara o enigma de conciliar os imperativos contraditórios de resguardar os laços econômicos com a Europa e os laços político-militares com a Rússia de Putin.
O líder chinês carece de poderes mágicos. No cenário de impasse militar atual, inexiste solução diplomática capaz de assegurar tanto a integridade territorial da Ucrânia quanto a sobrevivência do governo grão-russo de Putin. Xi sabe disso. Fala sobre paz e negociações para o público europeu, não para a Rússia ou a Ucrânia.
* Demétrio Martinelli Magnoli é um jornalista, sociólogo e doutor em geografia humana.
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