Joel Cavalcante*
Ao completar 80 anos, em 30 de março de 2017, o diretor José Celso Martinez Corrêa sentenciou categórico que não queria mais nada para si mesmo, estava satisfeito em sua individualidade. “Eu gostaria de viver mais uns 10 anos e quero tudo para o teatro”, afirmou, iluminado pelo sol da tarde de outono que entrava pela janela lateral do Teatro Oficina, no Centro de São Paulo. Zé Celso falou como se aquilo fosse uma novidade. Não, não era, afinal, desde o final da década de 1950, quando abandonou a faculdade de Direito para defender suas ideias no palco, era só nisso que ele pensava, no teatro. Foi assim até o fim. Ator, diretor, dramaturgo e militante das artes e da política, Zé Celso Martinez Corrêa morreu aos 86 anos em São Paulo, ontem (dia 6), depois de sofrer graves queimaduras em um incêndio na manhã da última terça (4), em seu apartamento, no bairro do Paraíso, na Zona Sul da capital, onde vivia com o marido, o ator Marcelo Drummond. “Zé Celso foi meu guru. Eu comecei a fazer teatro no Oficina, em 1963. É por causa dele que estou até aqui hoje nessa vida tão ótima que eu levo. Estou profundamente sentido com a morte dele, ainda mais por ter sido como uma tragédia. É uma perda irreparável”, lamentou o ator paraibano Fernando Teixeira, logo após receber a notícia sobre a morte do dramaturgo e enquanto ainda tentava elaborar sobre essa perda. “Estou escrevendo uma coisa aqui na vã expectativa de que ele volte. Mas é só poesia”, resigna-se Teixeira. Os primeiros textos montados por Zé Celso foram Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959), de fortes tintas biográficas. Sempre conectado às transformações internacionais, Celso colocou o Oficina no centro da vanguarda brasileira. Em 1963, o grupo conheceu o seu primeiro grande sucesso com Pequenos Burgueses, peça de Máximo Gorki, que estabelece um diálogo entre a Rússia anterior à revolução e o Brasil às vésperas de um golpe militar. Com a ditadura instaurada, Zé Celso persegue temas políticos em Andorra, texto do suíço Max Frisch montado em 1964, em que ressalta o acossamento dos regimes autoritários, com Renato Borghi e Miriam Mehler como protagonistas. Depois de assistir Andorra por duas vezes, Fernando Teixeira foi tomado pela força de Pequenos Burgueses. E foram dezenas de vezes que ele voltaria a esse mesmo espetáculo. “A atriz Etty Fraser era administradora do teatro e era ela quem me dava os ingressos porque eu não tinha grana. Esses ingressos viam com os números das cadeiras, que eu destacava e colocava no bolso detrás da calça. Um dia, fui colocar a mão no bolso e descobri que tinha assistido Pequenos Burgueses 36 vezes. Essa foi a minha formação, a minha cátedra, a minha universidade. Foi tudo.
Aprendi teatro vendo Zé Celso dirigir”, considera o “homem das artes”. É com esse aprendizado que ele retorna à Paraíba em 1965, funda o Grupo Bigorna e passa a dirigir várias montagens. Já a consagração de Zé Celso se no dá mergulho do universo brasileiro e antropofágico do escritor Oswald de Andrade. O Rei da Vela, peça escrita pelo modernista em 1937, permanecia inédita nos palcos. A peça estreou em 1967 e detonou a explosão tropicalista que tinha começado a ser desenhada pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. O Rei da Vela também virou filme. Dirigido por Zé Celso, a produção de 1982 marcou uma aproximação casual entre Teixeira e Martinez. “Assisti ao lado dele no cinema, em Copacabana. Depois, a gente saiu para um bar e ficamos conversando. Ele era aquela loucura e não parava de falar”, recorda o paraibano. Depois de tamanha repercussão com a peça, Celso supera na transgressão com a montagem de Roda Viva, peça inédita do jovem compositor Chico Buarque. Durante a temporada paulistana, em 1968, homens encapuzados e armados de cassetetes invadiram o Teatro Ruth Escobar e espancaram os atores. Mais um atentado seria registrado em Porto Alegre, com o sequestro de artistas, sepultando a carreira do espetáculo. A potência criativa volta a explodir com força em Ham-Let, versão muito particular da tragédia de Shakespeare que ganha encenação no recém-reformado Teatro Oficina, em uma estética provocativa e visceral que marcaria a sua trajetória dali para frente em peças que comumente duravam mais de seis horas, mas exerciam profundo fascínio em quem estava disposto a uma experiência teatral radical. Um dos projetos mais ambiciosos de Zé Celso atravessou a primeira década de 2000, a transposição para os palcos do épico Os Sertões, romance de Euclides da Cunha. O último espetáculo criado e protagonizado por Celso, no entanto, se deu em torno de um episódio de sua vida real. Na noite de 6 de junho, o diretor oficializou a união com o ator Marcelo Drummond, companheiro há 37 anos, em uma grande festa no Teatro Oficina que reuniu centenas de convidados, entre amigos, artistas e políticos. “Zé Celso é o cara que veio para quebrar as estruturas. Para ele, o teatro era o êxtase, o orgasmo. Ele não tinha o espetáculo como algo que deveria ser criado para que o público gostasse. Ele tinha obsessão pelo Teatro Oficina, que é um templo, uma coisa maravilhosa. Ele é único. Não tem pessoa que desenvolva um trabalho igual ao de Zé. Ele era um delirante o tempo todo”, concluiu Fernando Teixeira.
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