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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ele sonhava com os pés no chão

Nabil Bonduki*

Aos 85 anos, o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim - falecido na sexta-feira, dois meses e meio após um acidente de carro - estava longe da aposentadoria. Ao contrário, continuava ativo, lúcido e coerente com os princípios que o tornaram um dos maiores urbanistas brasileiros e um pensador humanista como não se faz mais neste mundo cada vez mais especializado.
No seu escritório no bairro de Perdizes, continuava coordenando inúmeros projetos, entre os quais o plano urbanístico para a Avenida Jacu Pêssego, local estratégico para a criação de uma nova centralidade, capaz de gerar empregos que possam equilibrar a relação entre trabalho e moradia da Zona Leste de São Paulo. Mas não se dedicava apenas ao urbanismo, tinha um leque amplo de interesses que iam das artes à política. Autor de dez livros, deixou um legado relevante, entre outras coisas, para o pensamento urbanístico de São Paulo, que nesse momento se concentra no debate sobre a revisão do seu Plano Diretor. E sobre esse assunto, Jorge deixou uma importante contribuição.
Depois de ter sido Secretário Estadual de Economia e Planejamento (1975-1979), de Meio Ambiente (1987-1990), duas vezes Secretário de Planejamento Urbano do município de São Paulo (1983-1985 e 2001-2004), presidente da Emplasa (1991-1994), Secretário Geral Adjunto da Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat II), que organizou o grande encontro que reuniu quase duzentos países em Istambul (1996), de ter elaborado planos diretores para mais de vinte de cidades brasileiras, coordenado projetos urbanos, como o do Parque do Anhangabaú, e de edifícios como o Parque Anhembi e o Hospital Alberto Einstein, ambos em São Paulo, Jorge ainda tinha disposição, tempo e paciência para participar, como Conselheiro da Cidade, de reuniões para debater a revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo e colaborar para melhorar o Projeto de Lei encaminhado pelo executivo para a Câmara.
Wilheim soube combinar os sonhos de uma cidade melhor com as possibilidades reais, ditadas pela política
Foi assim que se deu meu último encontro com ele, dois dias antes do acidente que lhe tirou a vida. Ele veio à Câmara acompanhado do engenheiro Ivan Maglio, que foi seu braço direito na elaboração do PDE e da Lei do Zoneamento durante a administração Marta Suplicy, para debater as sugestões que havia me encaminhado por escrito alguns dias antes, ressaltando a necessidade de incorporar alguns novos dispositivos à proposta.
Uma das estratégias mais importantes da proposta de revisão do PDE é a articulação entre o transporte coletivo de massa e o adensamento do solo. A ideia, que, em tese, é aceita hoje por todos, foi aplicada pela primeira vez no Plano Diretor de Curitiba, coordenado por Wilheim, em 1965 e, depois, implementado por Jaime Lerner. A cidade foi pioneira na criação de corredores exclusivos de ônibus e a lei de uso do solo previu o adensamento nas faixas ao longo desses corredores. Suas opiniões sobre o tema são, portanto, relevantes no processo de debate que se realiza no legislativo.
No PDE de 2002, Wilheim propôs, para estruturar a cidade de São Paulo, levar em consideração três elementos estruturadores: a rede estrutural de mobilidade (viário e transportes coletivos), a rede hídrica estrutural e a rede estrutural de eixos e polos de centralidades. E estabeleceu que a rede estrutural de transporte coletivo deveria orientar o adensamento da cidade, a partir da elaboração de Projetos de Intervenção Urbana, que definiriam a intensidade e as características do processo de ocupação do solo nessas faixas.
Ao analisar a proposta de adensamento ao longo dos eixos de mobilidade presentes no Projeto de Lei de revisão do PDE, Jorge aconselhou: "É preciso ser mais cauteloso! A norma axiomática de associar transporte coletivo de massa e densidade de pessoas não pode ser levada ao extremo de não impor restrições, nem de uniformizar a situação, pois os corredores variam de função." E sugeriu que fossem considerados outros elementos estruturadores (rede hídrica ambiental e centralidades), previstos no plano em vigor.
Além desse tema, o urbanista enviou mais vinte sugestões de alteração do texto, dentre as quais, quatro bastante polêmicas, merecendo ser conhecidas pelos que estão participando desse debate:
Regulamentar no PDE a chamada "cota de solidariedade" que prevê que os grandes empreendimentos imobiliários devem contribuir com terras ou recursos para enfrentar a questão da habitação;
Estabelecer que "a área destinada ao estacionamento e seus acessos devem ser considerados parte da área construída total, para efeito de cálculo do coeficiente de aproveitamento (CA), como alternativa para a limitação de vagas em garages de edifícios habitacionais, [o PL propõe limitar a uma vaga por unidade] pois o empreendedor decidirá, caso a caso, se prefere construir menos apartamentos (menos altura, menos m2) porém dotar cada unidade de mais de uma vaga; ou se prefere limitar estas vagas para maximizar o número de unidades habitacionais..."
Estabelecer que "em edifícios de qualquer natureza, o piso construído ao nível da calçada não poderá ser destinado ao estacionamento permanente de veículos."
Determinar que "os fechamentos sobre vias qualquer construção não poderão impedir a vista da área privada de recuo, não podendo os muros excederem um metro de altura, dando-se o prazo de 360 dias para a adequação de muros existentes à presente determinação, sob pena de sanção mediante imposto progressivo no IPTU."
Algumas dessas sugestões podem parecer utópicas frente às regras que hoje vigoram em nossa cidade, mas trajetória de Wilheim revela que ele antecipou ideias que levaram anos e até mesmo décadas para serem aceitas. Em 1963, foi o relator do no Seminário de Habitação e Reforma Urbana, que propôs instrumentos para combater a especulação imobiliária com terras ociosas e a criação de um conselho nacional de habitação, com representação da sociedade civil, instrumentos que somente foram criados com a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001.
Em 1987, quando Secretário de Meio Ambiente, testou o fechamento do centro por um dia aos automóveis, proposta que antecipou o hoje comemorado "Dia Mundial sem Carro". Em 1996, como Secretário Adjunto do Habitat II, contribuiu para a abertura do evento às entidades da sociedade civil, consagrando, em termos globais, a concepção de que a participação social é indispensável para o urbanismo.
O planejamento urbano e o pensamento utópico sempre caminharam juntos. Jorge Wilheim soube combinar os sonhos de uma cidade melhor com as possibilidades concretas, ditadas pela conjuntura política. Por isso, pode ter se frustrado com a não implementação imediata de seus planos e propostas, mas nunca deixou de acreditar que elas seriam instrumentos de transformação. Sua trajetória nos inspira a dar continuidade a luta por uma cidade mais humana e justa.
"Nabil Bonduki, professor titular de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, é vereador em São Paulo pelo PT e relator do projeto de lei de revisão do Plano Diretor Estratégico na Câmara Municipal.

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