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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Quando foi que nos perdemos?

Fabio Giambiagi*
Em "Conversa na Catedral", Vargas Llosa põe na mente de "Zavalita" uma reflexão melancólica: "Desde a porta da 'Crónica', Santiago observa a Avenida Tacna: automóveis, prédios desiguais e insossos, esqueletos de avisos luminosos flutuando na névoa, o meio­dia cinzento. Em que momento o Peru se ferrou?".
Quando foi que nos perdemos? Talvez os historiadores possam ter uma pista para entender os descaminhos do país na entrevista de 9/11/2005 de Dilma Rousseff ao Estado de São Paulo, na qual tachou de "rudimentar" o plano de longo prazo que uma equipe do Ipea vinha desenvolvendo. A entrevista representou o sinal de que, no embate entre reformistas e o PT "hard", Lula tinha arbitrado em favor do último. Tudo o que veio depois resultou das escolhas feitas naquela época. Com essa definição, o Brasil selou o seu destino. 
Com a estabilização, o Brasil tinha iniciado lentamente a construção de um ciclo virtuoso. Problemas específicos fizeram, porém, que a "decolagem" da economia demorasse a acontecer. Quando Lula assumiu, em 2003, manteve as linhas gerais da política anterior, indicou uma equipe econômica pró­ mercado e manteve diversos auxiliares do time de FHC. Então, superada a crise externa, deixada atrás a restrição energética e sem a incerteza eleitoral, após as medidas ortodoxas de 2003, o PIB se expandiu a uma taxa acumulada de mais de 9 % entre 2003 e 2005, com inflação declinante e desempenho fiscal robusto. 
Foi nesse contexto que, em 2005, alguns técnicos do Ipea recebemos a incumbência de desenvolver propostas para aprimorar a política em curso. O plano envolvia cinco componentes. O primeiro era a renovação da CPMF com percentuais declinantes. O segundo, a aprovação da Desvinculação da Receita da União (DRU) com percentuais crescentes em relação aos vigentes. O terceiro, a definição em lei de uma trajetória declinante para a relação Despesa corrente/PIB. O quarto, a limitação dos aumentos de pessoal. O quinto, a modificação da regra que indexava o gasto com saúde ao PIB. 
Há razões para considerar que, se alguma variante daquelas ideias tivesse sido adotada, a qualidade da política fiscal dos anos posteriores teria sido muito melhor. O problema era que Lula tinha sido eleito depois de 20 anos de pregação socialista, acenando com uma mudança radical em relação às diretrizes existentes até 2002, mas a política que vinha dando certo até 2005 caracterizava­se exatamente pela continuidade. 
Em tal situação, a cúpula do PT poderia ter reconhecido que as ideias defendidas durante 22 anos eram um equívoco e construído uma agenda com o PSDB. A alternativa era persistir na interpretação do "núcleo duro" do partido, de que o ajuste de 2003 era um mero movimento tático, após o qual seriam adotadas as "verdadeiras" políticas do PT, contrárias a tudo o que vinha sendo praticado. Na sequência, aumentar o gasto e reduzir o superávit primário seriam ingredientes de uma "virada à esquerda". Quando começamos a trabalhar no plano, acabamos no meio dessa disputa, na qual o lado reformista foi derrotado. 
Foi então, rejeitando o caminho do aprofundamento das reformas, ao optar pelo PT "hard" quando o país tinha tudo para dar certo, que Lula começou a ganhar as eleições de 2006 com uma política que jamais poderia funcionar no longo prazo, que sua sucessora iniciou a caminhada rumo à Presidência em 2011 ­ e que o Brasil extraviou a sua bússola. 
Nesse contexto, Dilma Rousseff deu a entrevista que foi equivalente a atropelar os reformistas com um tanque Panzer. Ali, ela declarou que "não se pode fazer uma projeção para 10 anos pensando em planilha. Quando você fala em 10 anos, tem que combinar com os russos, que são os 180 milhões de pessoas que vivem no Brasil". E, para que não houvesse dúvidas, arrematou com a frase antológica: "Essa história de que investimento é bom e despesa corrente é má é outra simplificação grotesca. Despesa corrente é vida: ou você proíbe o povo de nascer, de comer ou de adoecer ou vai ter despesas correntes". 
Quando o plano de ajuste foi apresentado numa reunião de ministros, aqueles favoráveis ao plano ficaram acuados, enquanto os adversários foram liberados para "bater". 
O resto é história. Em 2004/05, a despesa primária do Governo Central tinha sido de 19 % do PIB e hoje é de 23 % do PIB; o superávit primário, de 4 % do PIB em 2004/05, se transformou no déficit primário de 2 % do PIB; e o desequilíbrio fiscal, de 3 % do PIB naquele biênio, converteu­se nos astronômicos 10 % do PIB do ano passado. 
Escolhas erradas daquela época, motivadas pela cegueira ideológica, fizeram o país passar por um retrocesso de anos. Parodiando a frase atribuída a Churchill antes da Segunda Guerra Mundial, poderíamos dizer: "No passado, o Governo teve oportunidade de escolher entre o ajuste moderado e o crescimento forte. Escolheu o crescimento forte. Gerou a maior recessão de nossa História". Se Zavalita se perguntasse "quando o Brasil se perdeu?", a resposta seria: "ali por 2005".
Fabio Giambiagi, economista, coorganizador do livro "Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2010. 
**Fabio tem uma incomum capacidade de trabalho, a que se dedica com uma eficiência rara na comunidade acadêmica. Sobram-lhe também rigor analítico, capacidade de aglutinação e um grande apetite por lançar-se em temas polêmicos, mas críticos ao desenvolvimento do país. Foi ao tema da reforma da Previdência Social que Fabio mais se dedicou nos últimos anos, e a respeito do qual tem inúmeros textos publicados, além de uma incansável participação no debate na mídia, em eventos acadêmicos e na interlocução junto a autoridades governamentais. Destaque-se ainda seu profundo conhecimento sobre as finanças públicas no Brasil. 

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